Gilberto Gil, criador da música “Aquele abraço”, em 1969, depois da detenção, antes de partir para o exílio

Quando dei por mim estava emocionado. Foi instintivo. Peguei o jornal com as expectativas de sempre: convid19, bola fora do governo, dificuldades públicas na manutenção do distanciamento, desemprego… Mas ler jornal é vício velho, vem de família. E tem que ser jornal físico, de papel e daqueles em que mesmo as modernizações coloridas e a variação tipográfica ainda não afetaram o tamanho. Jornal, jornal, entende? Sabe, mantenho esta prática como os saudosos lenços brancos nas partidas de trens. Vai acabar, eu sei, mas enquanto isto sou dos que ainda viram as páginas.

Pois bem, estava percorrendo a ladainha de notícias que perderam o teor indignado quando, num desses cadernos complementares li a notícia de uma professora, de 47 anos, que decidiu abraçar seus 57 alunos, todos com menos de 10 anos de idade. Imagino o cenário em pleno Padre Miguel, na pobre Zona Oeste da Cidade Maravilhosa. Maura Silva disse que não aguentou a saudade e que precisava desesperadamente abraçá-los. Sabe o que fez? Do próprio bolso comprou material e paciente produziu “kits segurança”. Minuciosamente, fez um roteiro, contratou motorista para acompanhá-la e não economizou lágrimas. Surpresa para os meninos e meninas, com minúcia premeditada, avisou os familiares e contou com um carro de som que fazia a trilha sonora da visita: as músicas que as crianças cantavam na Escola Municipal Frei Vicente Salvador.

kit-abraco

Maura Silva do próprio bolso comprou material e paciente produziu “kits segurança”

O artigo foi destacado numa primeira página do “Caderno Local”, mas é breve. Queria mais e não encontrando detalhes, busquei referências ao sentido do abraço pessoal, ou melhor, sobre a ausência dele. Queria saber mais sobre ressonâncias corporais, efeitos psíquicos. Foi assim que alinhei algumas lembranças que, como sempre, despertaram o que de melhor tenho, sensações ternas e fome de explicações.

Filtrei análises sobre os simulacros permitidos pela parafernália das máquinas modernas e logo constatei que o contato físico, tátil, tem mistérios mais sutis do que os visuais ou auditivos, requer sensações que não são compensadas, mesmo com muita perda, pelo ouvido ou pelo olhar, pelo cheiro ou mesmo pelo paladar. Há todo um jogo de satisfações que envolve o tato coordenador de braços, mãos, ritmos, posições de cabeça, ombro e até batimentos cardíacos. Há uma dança tocante, ritualística… Mas abraços pandêmicos têm histórias.

Quando a covid19 começou a assustar o mundo ainda era um alerta distante, algo que acontecia na Europa e o século passado mal tinha acabado de virar. As explicações antropológicas alertavam que a Itália era o país mais afetado devido a cultura da proximidade entre pessoas socialmente calorosas. Fator determinante do contágio a euforia das relações parecia ser uma determinante potencialmente letal. Roberto DaMatta no Brasil anteviu o problema confirmando o risco brasileiro também latino e festeiro. Tão dados aos abraços e toques; tão cheios de beijinhos (em todas as escalas) e a alongados cumprimentos com as mãos, seríamos naturalmente um país de vulnerável. E nem é preciso mencionar campos de futebol, cerimônias religiosas, blocos de carnaval… Estava claro o risco. Claríssimo!

Roberto DaMatta

Roberto DaMatta no Brasil anteviu o problema

O que era distante logo chegou e, mesmo pressentindo o comando desastrado, vimos nossas resistências enfraquecidas numa velocidade apenas lógica na ordem inversa da curva ascendente do contágio. Praticamente abandonados pelo governo, o medo derrotou a decantada graça brasileira, perdemos a picardia e aos olhos do mundo tornamo-nos perigosos, destruidores do meio ambiente, injustos com os pobres, incapazes de reações articuladas. E entre nós mesmos, fomos assim, com rapidez, trocando o riso fácil e solto pelas lágrimas latentes. Dia a dia, deixamos de sair de nossas casas, postergamos encontros, celebrações e visitas foram minoradas. Tivemos que aprender esperar, mesmo sem paciência. As máscaras se fizeram peremptórias e as conformidades foram se naturalizando. Entendemos na marra o significado de protocolos de distanciamento. Tudo isso limitando os abraços que se escassearam na cadência do confinamento.

Meditava sobre isto quando me ocorreu um repertório musical que poderia ter servido de alerta. Sim, no Brasil as músicas avisam. A primeira e óbvia canção que saiu da alma foi “Aquele abraço” do glorioso Gil, em 1969, depois da detenção, antes de partir para o exílio. E amorosamente lembrei-me adolescente apaixonado cantarolando, do outro Gilberto, o João da bossa nova, que “Só em teus braços amor eu posso ser feliz”. Em contrapartida me soou Daniela Mercury provocando “Somos desse mesmo planeta/ sou rio e necessito do mar”, e não bastando, em seguida Bethânia foi emendando “Abracei o mar na lua cheia”. Bem, de Bethânia para o irmão foi um pulo só, e me apareceu Caetano quase declamando “Dei um laço no espaço/ pra pegar um pedaço/ do universo”, era “Abraçaço”. Tudo se ampliava de um jeito que Gabriel o Pensador parecia profeta dizendo “eu vou correr pro abraço/ não faço tudo que amo, mas amo tudo que faço”. Talvez, ninguém tenha suplicado como Milton Nascimento “me dê um abraço/ venha me apertar”. Ivan Lins, porém, parecia pensar hoje quando choramingou “perdoem a cara amarrada/ perdoem a falta de abraço” e terminou como recordarei este tempo “os dias eram assim”. Ah, memória afetiva; ah, memória subterrânea, onde caberá “aquele abraço”… Alô, alô, Terezinha…

***

NR: Ao folhear OGlobo, como faz religiosamente todas as manhãs na terra maravilhosa, Mestre Sebe levou um susto neste sábado ao se defrontar com a crônica do escritor angolano José Eduardo Agualusa “Troco tudo por um  abraço”, que pode ser conferido em https://oglobo.globo.com/cultura/troco-tudo-por-um-abraco-24538423