Acusado de comunista, Lobato foi preso em 1941 e suas obras mais políticas foram excluídas das bibliotecas oficiais, principalmente no Vale do Paraíba
Que Lobato era personagem interessante, não resta a menor dúvida. Polêmico em vida, seu espírito acerbo continuou depois da morte em 1948. E quantas controvérsias fermentou, todas com vocação para o presente, com promessa de posteridade! Isto é bom, sinal de saúde crítica. Entre tantas provocações semeadas no passado, uma de minhas favoritas é a confusão armada contra uma das primeiras mostras da chamada “arte moderna”. Com alarde, na edição d’O Estado de São Paulo de 20 de dezembro de 1917, investido de especialista, envenenou a opinião pública com o artigo “A propósito da exposição Malfatti”. Anita, moça tímida e recém chegada de Berlim, mostrava avanços pareados às correntes em voga na pintura vanguardista europeia. A sonoridade da virulência lobateana repercutiu forte, e há mesmo quem atribua a isso seu isolamento da turma que compôs a Semana de Arte Moderna de 1922. Cá entre nós, acho que houve algo mais, inclusive busca de luzes para que ele se exibisse no início da fama.
Aquarela de Lobato, bem convencional
Ainda que pouco ventilado, Lobato era pintor e nesse campo chegadinho a aquarelas coloridas e bem convencionais. Mas, infelizmente, seu lado de pintor – bem como o de fotógrafo – ainda carece de ventilação. É, pois, preciso explorar outras facetas de nosso polemista mor, ir muito além de suas aproximações com as letras ou com os temas surrados em suas biografias. Sobretudo, faz-se urgente relativizar a infantilização de seu labor total. À propósito, valho-me de elogiável Projeto de Modernização do Museu Monteiro Lobato – também conhecido como Chácara do Visconde ou Sítio do Pica-pau-amarelo – para parodiar a investida.
Sabe-se de equipe que retraçou um Projeto, venceu edital público, visando repaginar o espaço e o acervo. Nem é preciso dizer da oportunidade da investida, posto ser miserável o atual estado de conservação do logradouro. Tudo lá é miquelino, redutor, simplório, nada condizente com uma proposta que abrigue dinâmica e intrigas convenientes ao ambiente de uma cultura a ser revitalizada no plural. E, cabe ressaltar ainda: o que é oferecido ao público não é indutivo, não é atraente, ou sequer pedagógico. É chato mesmo, aborrecido até, sem falar de frustrações vendidas em nome de uma obra que merece cuidado, até por seus desvãos.
Nessa linha, ressalte-se que a pobreza do acervo só perde para o rebaixamento temático que insiste em infantilizar a percepção de José Bento Monteiro Lobato, e assim cria ocos para teorias conspiratórias de alcance imbecil. Isto para se dizer o mínimo. E me invisto de autoridade para afirmar, tanto por ser doador de três aquarelas, desenho de ilustração original de imagem de Tia Anastácia, selos comemorativos e autógrafo do criador de Cidades Mortas.
Marisa Lajolo (USP), JC Sebe Bom Meihy e Vera Batalha (Unitau) em novembro de 2012 em mesa redonda na Unitau sobre o tema “O outro Lobato”
Pois bem, a par do desprezo (deveria dizer desrespeito?) por uma produção dinâmica e das mais fermentadas da cultura nacional, o Lobato do Sítio jaz conformado na masmorra museológica cultivada em sua terra natal. E mais: supostamente referenciado em local que, provavelmente, nunca pisou, pois, sendo neto bastardo, a “visconda”, mulher do Visconde de Tremembé, a distinta dama não acataria a presença do “neto ilegítimo” em sua casa. Talvez, uma das provas mais pungentes dessa situação se materialize no pouco prezo devotado pela cidade ao seu ídolo maior. Afora um cidadão de destaque por pesquisas afortunadas, Osni Lourenço, Lobato não mereceu cuidados de uma universidade, a UNITAU, incapaz de, ao longo de décadas somadas, produzir um especialista de renome nacional. E olhe que o reverso progride, pois temos no ventre da urbe, frutos da terra que germinam ignorância e progridem ataques sempre pouco fundados, nada pesquisados, sobretudo anacrônicos e eivados de preconceitos reversos.
Uma pena que nossa cidade deixe multiplicar, sem respostas claras, vozes que tornam Lobato uma espécie de Judas do racismo estrutural que, sim, persiste em nossa sociedade como um todo. É lógico que, como brasileiros atentos aos desafios da contemporaneidade, descobrimo-nos racistas, preconceituosos, excludentes, mas – é importante que respondamos – por que Lobato se torna alvo preferente? E tudo se verte emblemático: sua obra como atestado de erros históricos, o silêncio de estudiosos locais que nada veem, nada escutam e nada falam, o vazio cultural drenado por argumentos contextuais. E vem agora um Projeto de Modernização. Aiaiaiaiaiai…
Mas com o esforço devido apoiemos a tal “modernização” e, na rota da colaboração, abramos nossa bússola para o entendimento da pergunta conceitual elementar: modernização de quê? De que arquivo, de que acervo, de que legado? Por certo, modernizar o que temos é investida deletéria que se perde no cavo da cultura local sempre esvaziada de bom senso e de iniciativas efetivas. Mas suponhamos possibilidades, pensemos em propostas qualificadoras do esforço necessário. No reino das carências, sem dúvidas, a inteligência seria o primeiro suposto. Falo de inteligência instruída, criativa, não de meros achismos, reforminhas, e enfeites tolos. E então o primeiro passo seria dado a partir de alternativas expressas pela consideração da obra de Lobato, e não das figurações vertidas em clichês que mais têm a ver com a comercialização televisiva do que propriamente com o conteúdo cultural lato sensu.
Escritor, Pedro Bandeira foi muito criticado pela releitura adaptada da obra de Lobato
Então, o que seria “Modernizar o Museu Monteiro Lobato”? Antes de tudo, quebrar inspirações teóricas, pré-moldadas, generalistas demais, inexequíveis, alheias à intenção do instituto. Museu não é centro de pesquisa, não é escola, não é parque infantil. A primeira questão a ser respondida, pois, seria: para quem seria “modernizado” o Museu Monteiro Lobato? Teria endereço amplo, nacional, ou seria recado para o público local? É evidente que se pode pensar na trança de ambas finalidades, mas (outra vez) seria necessário inteligência, discernimento, discussão ampla, envolvimento de diversos polos representativos e de especialistas. Digamos que, para começar, seria cabível uma orientação visual que dirigisse leituras para “um Lobato doméstico” e outro “Lobato universal”. Sob um título como “As duas faces de Monteiro Lobato”, poder-se-ia sintetizar o roteiro-guia da almejada modernização.
Começamos então falar de motes referenciais apropriados que merecem desenvolvimento. No primeiro caso, supõe-se um diálogo franco, aberto, exercitado com a cidade, com a Taubaté em seu mundo particular urbano, vale-paraibano, familiar. Depois, em outra instância, com a sociedade em geral, respeitando-se a produção lobateana em diálogo candente com os temas nacionais: livro, saúde pública, camponês, negros, petróleo. Sem precisão desses dois lados da moeda, vamos continuar afogados no mar imenso de possibilidades etéreas, e com elas bêbados na imensidão que pretende tudo sem chegar além da bobagem que temos hoje. Por certo, sem conceito definidor de planejamento, como pretexto, a tal modernização será apenas uma carta de intenções sobre o tudo e sobre o nada. E, assim, para fechar esta sugestão que promete continuidade, não há como evitar o mote dado pelo próprio Lobato no caso de Anita Malfatti: paranoia ou mistificação?