Sou leitor de jornais! Sim, entre os rituais de iniciação do dia – café, redes sociais, e-mails – o mais prezado se reduz a abrir a porta e colocar o jornal pra dentro de casa. Inevitavelmente me vem à cabeça – dia sim e outro também – o texto “O homem nu” do cronista mineiro Fernando Sabino. O temor de ficar fora, com ou sem a pouca roupa, me apavora. Mas isso passa logo. A cerimônia das viradas de páginas exige devoção e os preparativos prévios são apenas os essenciais relativos à higiene: bexiga vazia, dentes escovados, banho, tudo nesta ordem. Café preparado, a mesma velha xicara acompanha em goles medidos o tempo da leitura silenciosa e sempre sem pressa. Tudo pode esperar. Tudo…. E, na cadeira preferida – ah, minha cadeira de leitura mal sabe do prazer que seu colo me provoca. Orgasmos múltiplos.
Tal é o requinte que devoto à essa prática que as notícias, por piores que sejam – e têm sido – correm como rio sobre um leito paciente e que desemboca no mar agitado dos afazeres seguintes. Com tanto aperfeiçoamento, desenvolvi um jeito próprio de ler jornal. A linha editorial apenas funciona como pano de fundo, uma espécie de cenário, e dela destaco a seleção dada por partes. Primeiro as notícias gerais, depois as internacionais, econômicas, culturais, esportivas. Isso provoca a seleção de cadernos, condição depurada de anos. Sabe, leio anúncios fúnebres, ofertas de supermercados, previsão do tempo, a opinião dos leitores e a flutuação do dólar. Só dispenso – não sem remorso – as fatigantes propagandas de automóveis… Credo!
O café quentinho ajuda na leitura do jornal diário
Pois bem, aos domingos alargo ainda mais o tempo em coerência com o tamanho ampliado do jornal. Parece que os braços do relógio também se movimentam mais preguiçosos e o silêncio de minha insistente viuvez fica ainda mais soturno. Devo confirmar que sou daqueles leitores que tem sempre uma tesoura às mãos. Recorto artigos, notícias e até propagandas. Nunca as aproveito, e depois até me irrito com os amontoados dessa prática insana. Foi assim que juntei sobre minha mesa de trabalho alguns destaques que me chamaram a atenção e que revisei antes de exterminá-los. O primeiro foi um anúncio (será que a ainda usam esta palavra? Sei lá, sou do tempo do “reclame” ou “proclamas”, credo!), eis o “convite”:
“É COM GRANDE PESAR QUE (NOMES) CONVIDAM PARA A MISSA NA PARÓQUIA (NOME) ÀS 12H DE SEXTA-FEIRA (DATA). CONFIRME SUA PRESENÇA NO CEL (NÚMERO) OU ASSISTA A TRANSMISSÃO ON LIVE PELO CANAL DO YOUTUBE DA PARÓQUIA (ENDEREÇO ELETRÔNICO)”.
Precisei reler! Repeti a operação. Respirei fundo. Senti-me arcaico. Notei que as pessoas continuam morrendo e que ainda são celebradas missas, mas o script mudou demais. Missa ao meio dia? Nossa, pensei. Mas, de verdade meu queixo caiu (lembram-se desta expressão “queixo caído”) quando aprendi que o RSVP poderia ser dado por celular e que a cerimônia seria transmitida por canal do YouTube. Por certo seria por conta da pandemia, supus. Uma curiosidade impertinente, porém, me assolou. Resolvi acessar o endereço eletrônico da Paróquia e por telefone ousei pedir explicações. Tive que me segurar ao saber que essa prática “está em vigor” (sim eles usaram esta expressão “em vigor”) há mais de dois anos. Mediante meu silêncio, como que evocando uma ressureição, ouvi da voz do outro lado da linha a cruel sentença “meu senhor, Deus é onipresente, onipotente e onisciente”. “Bati o fone no gancho” (ou melhor, “desliguei”). Desliguei e conclui que daqui a alguns anos não mais terei o prazer de ler jornal. Pior: creio que serei lido por ele, graças à evolução.
Juro que essa experiência me abalou. Tanto fiquei chocado que me vi ressuscitado por outra chamada, do mesmo jornal, no mesmo dia: “VOCÊ PODE NÃO SE APAIXONAR NA AMAZON, MAS PODE NUMA LIVRARIA”.
Aqui, o argumento é reverso: a mediação eletrônica atrapalharia a circunstância do encontro. O apelo passional direto merece destaque pela intransferência, e, pelo contrário, apelaria para necessidade intransferível de contatos presenciais. No caso da missa, era Deus o agente unificador, abstrato, poderoso, anulador de entraves. Já na livraria o livro justificaria junções.
Dando asas a voos desvairados, pensei no paradoxal, posto entender que Deus é o Verbo Divino encarnado e, assim, no caso da igreja, poderia promover uniões virtuais, mas no caso das palavras escritas, dos livros, tudo teria que ser cara a cara, ou seja, parodiando o verbo seria humano.
E as horas correram. Eu, entre uma coisa e outra, voltava a pensar nas ambiguidades da eletrônica. Se cheguei a um termo? Creio que sim: continuo sem entender os caminhos da humanidade e da mediação eletrônica. É bom que siga assim, até que eu morra apaixonado pelo livro da vida. Depois, depois Deus explicará os contatos virtuais. Ah! Se alguém se comover com minha morte, se não puder me velar presencialmente, pode fazer pelo canal virtual…