Em circunstâncias de epidemia coisas estranhas acontecem, às vezes de maneira provocativa. Foi assim com o meu dia dos professores. Não bastasse a abstinência de desejáveis abraços, beijos estudantis e de colegas, o isolamento ainda provocou uma estranheza extra. Antes de contar esta história, devo confirmar o recebimento de muitos abraços e menções carinhosas… Mas foram saudações virtuais… Gostei, é claro, mas achei meio chato, indicativo de sinais dos tempos. Acatei todas efusivas lembranças e até as potencializei na chave do reconhecimento acho que merecido. Ser lembrado é bom, e ser homenageado é melhor ainda. Sim, no dia dos professores me permito exageros e deixo que a vaidade me assuma por inteiro. Pois bem, houve uma exceção nessa nova proposta comemorativa. Foi assim: o interfone tocou, o responsável pela portaria disse que havia um pacote me esperando, e que deveria buscá-lo. “Só um pacote”, proclamou o interlocutor.
Desci correndo, mas não alcancei o presenteador (ou seria presenteadora?). Entre eufórico e frustrado, depois de higienizar o pacote com o álcool em gel disposto no elevador, abri furiosamente o invólucro, adivinhando que seria um livro. Com toda maldade que me permito nesse dia, logo fui reclamando: mas que falta de imaginação, dar um livro para um professor, no seu dia. Não seria mais adequado uma garrafa de vinho, flores, frutas, uma camiseta de time de futebol que fosse… Enquanto me livrava do papel e do barbante insistente em nós bem dados, minha imaginação, num zênite, se interessou pelo tema do regalo. Seria um livro de história, de análise política, um romance, um compêndio de poesia? Pois bem, em fração de segundos aposentei as reclamações e se me abriu um céu de possibilidades. Qual não foi minha surpresa quando, vi fechada a porta do elevador, o título do presente: “Como falar com um viúvo”, capa linda e colorida, com texto de Jonathan Tropper. Pronto, o curto caminho até o meu apartamento se transformou em uma jornada longa e interminável. Venci, porém. Entrei, já sem sapato – sou daqueles que preferem ler descalço. Com o livro aberto, sentei-me em minha cadeira de leitura, fisgado, tendo remetido para minha pré-história todos os questionamentos anteriores.
Jonathan Tropper, autor do livro que pegou Mestre Sebe de surpresa
O livro começa com a descrição de uma fatalidade: a morte da esposa Hailey em um trágico acidente de avião. Doug Parker, o marido/personagem, seria um desses tipos que não nasceram para casar, mas, por armação da vida, conhecera a mulher de seus sonhos, dez anos mais velha que ele. Mais velha, mas linda, loira, de olhos faiscantes nos seus 10 anos a mais do que ele. A diferença etária, contudo, não se fez empecilho para a felicidade do personagem que, afinal, encontrara na esposa o porto seguro, a parceira ideal, a tal mulher dos sonhos. O fato dela ter um filho adolescente, fruto de relação anterior, em vez de problema mostrou-se solução, pois aprendera a amar o garoto como legítimo pai. E sua vida de insucessos, seria coisa do passado, e no pretérito ficara sua condição de jovem desastrado, aluno medíocre, frustrado, dono de várias tentativas de ingresso em universidades reputadas.
Adulto, até a chegada de Hailey, Doug fora um eterno buscador de empregos nos quais não se adaptava. Em dois anos era outro homem, o mais feliz do planeta, e tanto que até bonito se tornara. Depois desse convívio mágico, por um desastre, sem mais nem menos, encontramos nosso herói transformado no melhor modelo de triste mortal. Sem seu par perfeito, restou-lhe pouco, no máximo assumir uma coluna do jornal de sua cidade, no interior britânico, onde escrevia conselhos capazes dar vasão à mais chorosa agonia. Detalhar a vida de um enlutado chegado a bebidas e ao pessimismo mais escalafobético era sua missão. A coluna chamada “como falar com um viúvo”, contudo, seria sua tábua de salvação. Seria… Seria se não houvesse uma soma hilária de circunstâncias complementares.
Penalizada com a viuvez do pobre Doug, considerando a depressão progressiva, sua irmã gêmea resolvera mudar-se para sua casa. Ela, que antes era a sensata e a mais ajustada familiar, agora, em plena gravidez, agia como reformadora do mundo, e, pior que tudo, revelara que conhecera o pai da criança, um amigo fiel do clã, em pleno funeral da esposa. Isso era imperdoável para o viúvo. Inda mais agora que estava prestes a se separar. A chegada da irmã com futuro rebento implicava adaptações da casa e assim anunciava-se uma guerra fraticida: ele queria deixar tudo do mesmo jeito e ela impunha mudanças drásticas.
Encrencas familiares se multiplicavam: o pai teve um AVC com sequelas graves, inclusive com perda de memória. A mãe alienada optou por representar papeis teatrais do tempo de moça e vivia em performances dramáticas, paramentada para apresentações hipotéticas. O rapaz, o tal amado filho postiço, se metia em confusões sérias e não era mais o jovem candidato à perfeição. E que dizer dos namoros propostos pela irmã? E das imaginadas alternativas sexuais imaginadas para tirar Doug do vazio?
Tudo começou com a data de 15 de outubro, Dia dos Professores
“Como falar com um viúvo” é um texto de redenção. O contorno da dor, o sofrimento atroz é abalado por um humor fino, crescente. A leitura dessas deliciosas páginas permite evocar Freud nos ensinamentos derivados de outro livro importante, de 1905, chamado “Os chistes”. A transgressão é uma das dimensões capazes de transformar condições mórbidas em discursos aptos a requalificar a vida. Talvez seja exatamente isto que Caetano Veloso sintetizou na passagem da canção “Vaca Profana”, de 1984 “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. O dia do professor passou. Passou deixando uma lição: há jeitos de se comunicar com um viúvo, principalmente se for um viúvo professor.
Não sei quem deixou o livro na minha portaria. Um dia aparecerá, mas tenho que dizer que há sim modos de falar com viúvos. Em certos casos como o meu, deixar dúvidas é boa alternativa. Se houver interessados, é só pedir o endereço.