A crítica estrangeira o elegeu autor o gol mais bonito da história do futebol
Sabe-se: ninguém passa impunimente pela vida. Desdobrando tal certeza, vale supor que nenhum brasileiro é imune à presença genial desse mineirinho nascido em Três Corações aos 23 de outubro de 1940. Desde garoto, o menino batizado Edson Arantes do Nascimento teve o futebol como expressão. E sua trajetória é de continuidades, pois seu pai, João Ramos do Nascimento, também foi jogador do Vasco da Gama de São Lourenço, e era conhecido como “maleável”, por ser “cabeceador”. Daquele tempo, o entusiasmo do garoto fez crescer a admiração por um goleiro apelidado de Bilé e, diz a lenda, que moleque com a língua presa, aquele que viria a se tornar o “maior atleta de todos os tempos”, pronunciava Pelé. E Pelé ficou ele vida a fora. Três detalhes chamam atenção nesse quesito: 1- além de se tornar famoso pela camisa 10, a segunda posição preferida de Pelé foi o gol – e algumas vezes até atuou nessa posição, a mesma de seu filho; 2- dizem que seu pai sentiu forte abalo quando em 1950 o Brasil perdeu de 1 x 0 do Uruguai, deixando escapar o mundial, pois bem, ao ver tal situação, Pelé teria jurado que um dia o Brasil ganharia a disputa… e em 1958 conseguiu, repetindo por mais duas vezes a promessa; 3- não tendo significado na língua portuguesa, em hebraico o termo “pelé” significa milagre. E o milagre se fez brasileiro nos campos verdejantes de nossa identidade nacional. Sim, não há como esquecer que, entre as definições estrangeiras sobre a presença brasileira, o nome Pelé é dos primeiros que despontam.
Logo que se anunciou a celebração do aniversário do “Rei” cogitei a saudação. O tempo foi passando e, prudente, resolvi aguardar manifestações que, afinal, esperava bem mais efusivas. No correr do aguardo, vivenciei dois processos contraditórios: um amplamente favorável e outro nem tanto. Por lógico, não poderia deixar de lado os predicados reconhecidos do gênio do futebol arte, dono de dribles inacreditáveis e gols antológicos e, sobretudo, da ampla visão de campo que lhe garantia domínio da situação. Eu o vi jogar três vezes e lembro-me em detalhes de lances que incendiavam a torcida. Sentia-me enlouquecido vendo o espetáculo, não economizava expressões de delírios, mesmo quando o time derrotado era o meu Corinthians. Aliás, diga-se, o coringão sempre foi adversário favorito de Pelé. Sabe, nem levo em conta que foi contra o timão que ele perfez o maior número de gols em um quadro adversário, nada menos que 50.
Edson Arantes do Nascimento começou a jogar no Santos ainda adolescente
Mas este meu reconhecimento tem valor agregado ao talento que naturalmente ganhou a admiração universal – somente os argentinos com Maradona e Elza Soares com Garrincha acham que foi não foi o melhor. Pelé é alguém de minha geração, representante que lustrava o epiteto de uma época que mereceu ser identificada como “anos dourados”. Corria, na estreia do jovem Pelé, o tempo de JK que, como ele também mineiro, interiorano, soube virar pelo avesso um pretérito sufocante, de um Brasil menor que, segundo Nelson Rodrigues, depois do Mundial de 1958 perdeu “o complexo de vira-lata”. Contudo, minha geração, a mesma de Pelé, vivenciou momentos de cortes democráticos. O moço de 1958 cresceu, e no caudal geracional, assistiu a troca dos anos efusivos pelos “anos de chumbo”. Meu lado crítico, porém, coexistia e demandava exames paradoxais, assim, na dinâmica dos acontecimentos perguntava do papel de Pelé no ambiente daquele Brasil que se desbotava no obscurantismo ditatorial. Via-se, na sequência do sucesso do Rei, a ressurreição da velha “elite do atraso” e então questionava o papel social de Pelé.
Parece que seu pendular ainda se repete
Nesse trajeto pendular que historicamente nos acomete doía ver Pelé assumindo perturbador protagonismo. No começo dos anos de 1970, no instante de maior recrudescimento da ditadura, disse que o povo não sabe votar. No contexto da suspensão das eleições diretas para cargos do Executivo, esse brado soou mal. Muito mal. Vivíamos sob regime de exceção, a Imprensa estava amordaçada, os movimentos políticos e estudantis reprimidos, enfim, todas as garantias constitucionais suspensas. Demorou muito para o ex homem do povo se reconhecer negro e assumir alguma defesa da democracia. Mas isso o invalidaria como herói nacional? Seria explicação para o pouquíssimo festejo de seus 80 anos? De que Pelé falamos?
Maduro, Pelé foi homem de muitos amores, vivia cercado de belas mulheres, sempre brancas, como Xuxa e Flávia Cavalcanti, ex miss Brasil. Independente de relacionamentos episódicos, Pelé viveu alguns casos oficializados. Entre 1966 e 1982, aos 16 anos, uniu-se a Rosemari Cholbicon com quem teve três filhos: Kelly Cistina, Jennifer e Edson (Edinho). Outro casamento ocorreu em 1996 e durou até 2008 sendo a cantora gospel Assíria Lemos Seixas mãe de gêmeos, Celeste e Josué. Depois dessa experiência, Pelé se ligou à uma descendente de japoneses, Marcia Cible Aoki, com quem se casou em 2016. A par de uniões estáveis, o Rei teve duas filhas “fora”, sendo uma com sua então empregada Anizia Machado, mulher negra, que gerou Sandra, a quem ele não reconheceu, deixando mancha indelével em sua biografia. Além dessa, com a jornalista Lenita Kurtz, Pelé teve outra filha, registrada com referência oficial. Pesa, pois, contra a boa reputação do atleta o fato de não reconhecer Sandra Regina Machado Felinto, mesmo ela estando doente, vindo falecer na miséria.
Casamento com Rosemari Cholbicon mãe dos filhos Kelly Cistina, Jennifer e Edinho
Paradoxo fatal: o que consideramos nos festejos de Pelé? O “atleta do século” ou devemos prezar suas faltas? “Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, ou “tudo junto e misturado”? Vejo uma vantagem na consideração conjunta: falamos de um ser humano, não de um deus impoluto. Reconheço seus erros, mas não tenho como esquecer dos 1.281 gols em 1.363 partidas; nem das alegrias por participar vivamente do tricampeonato do mundo e do bi pelo Santos e que venceu por dez vezes o Campeonato Paulista. Vendo-o hoje velho, percebo o trânsito da história que é dele e de uma geração que com ele aprendeu a validade da vida com as contradições inerentes a todos. Viva Pelé 80 vezes viva.