para Sílvio Tendler, leitor atento
Sempre me questiono sobre personagens perturbadores da nossa história tão comportada. Quando a intensidade aperta, com meus botões, indago daqueles tipos que caberiam numa caixinha diferenciada, composta por personagens que não se ajeitariam no figurino apertado do bom-mocismo nacional. Não falo, portanto, de heróis oficializados por um tipo de conhecimento carimbado na exclusividade conveniente do “ordem e progresso”. Não. Na listinha secreta de meus (des)amados – no padrão literário ocidental Georges Bataille os chamou de “malditos” – não faltam indicações que variam de acordo com o momento em que a questão é apresentada.
O arco de possibilidades de meus delirantes cobre tipos plurais que vão de Madame Satã a Raul Seixas, passando por referências femininas como Chiquinha Gonzaga até Ângela Rô-rô. No contexto em que vivemos, é claro que o panteão masculino é bem mais frequentado e inclui tipos históricos como os polêmicos Calabar, Joaquim Silvério dos Reis ou mesmo alguns contemporâneos que causam controvérsia como Simonal, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos. Mas, a par desses exemplos mais exibidos temos outros que vistos em suas singularidades dão trabalho à nossa imaginação insatisfeita. Entre tantos, tem um sujeito discreto, senhor de aparência assisada, pouco notado, mas que visto pelo avesso da seriedade moralista ganha dimensões surpreendentes: Alcides Aguiar Caminha.
Devo dizer antes de tudo que este meu personagem escolhido na oportunidade do agora foi um fulano sobretudo camuflado, liso, capaz de disfarces eficientes, e, mais do que isso, soube dignificar o “não tô nem aí”. Pois é, por anos a fio, ele fez questão de viver em seu delicioso anonimato, longe de olhos ajuizados ou da sedução dos notáveis. Não que não fosse merecedor de todas as atenções, mas por determinação própria preferiu não aparecer, ainda que tenha sido um dos principais influenciadores da moderna cultura urbana brasileira.
Mas quem foi o tal “seu Alcides”? Projetando-se como modesto funcionário público do Ministério do Trabalho no Rio de Janeiro, quem o via sempre sério, conhecido como bom pai de cinco filhos, casado por mais de 25 anos, nunca poderia supor que se tratava do mais importante pornógrafo popular brasileiro. Escondido como soube se fazer, seus leitores jamais imaginariam a complexa personalidade internada naquele senhor suburbano, classe média, “normal demais”. Vivendo entre 1921 e 1992, o tal anônimo Caminha se escondia sob o pseudônimo Carlos Zéfiro, autor dos aclamadíssimos “Catecismos”, ou seja, das revistinhas de sacanagem que atravessaram décadas, e até hoje causam frisson.
Tudo interessa no caso de Zéfiro. Supostamente inspirado em um conhecido pornógrafo mexicano que lhe serviu de impulso, dele assumiu o tipo de histórias curtas, ainda que se diferenciasse nos traços e demais detalhes. Cenas de sacanagem explicitas, com palavreado chulo, enxuto, mas objetivo e provocador, as transas eram resolvidas em parcas sequências de até, no máximo, 32 páginas ilustradas. Das primeiras às derradeiras publicações, há alguma evolução nas soluções gráficas, e até nos desenhos, mas nada que revolucionasse a proposta matriz. O que realmente interessava era o exagero das formas anatômicas grosseiras, tanto das mulheres como dos homens. Com sequências simples, previsíveis, os personagens multiplicavam tipos identificáveis no cotidiano. Normalistas, enfermeiras, primas, vizinhas, virgens ou casadas infelizes, elas se compunham com pares sempre potentes e sedutores. E nas tramas, valia tudo. Tudo. Ah, havia lugar também para feias, velhos e velhas, religiosos, pedreiros, viajantes, deficientes físicos. E muitas vezes as sessões eram de mais de dois.
Enfim, as revistinhas – sempre mencionadas no singular – tornaram-se famosas e uma depois da outra, sem marcar nexos narrativos, compuseram leituras constantes de pelo menos duas gerações de nossos jovens – homens e mulheres. No formato aproximado de 14 x 24, com poucas exceções, os exemplares eram distribuídos por um sebo no centro do Rio e vendidos em bancas de jornais em todo país. Chama muito a atenção essa prática ter atravessado todo regime militar, mesmo os anos da censura mais acentuada. Cabe, então, a pergunta que não merece mais ser evitada: como e por que isto se deu? E a resposta vem pelo alentado público consumidor, curiosos aprendizes e sacanas reprimidos. Zéfiro educava, compensando interditos moralistas tão evidentes no Brasil. Zéfiro motivava, ilustrando fantasias reprimidas. Zéfiro libertava a imaginação sexual contida.
A história das aventuras de Zéfiro – aliás do “seu Alcides” – poderia ter passado sem destaque não fosse a audácia de Juca Kfouri que, em 1991, publicou na Revista Playboy (edição 196) o resultado de uma investigação intrincada. Antes, alguma coisa repontava aqui e ali: Geraldo Galvão Ferraz o revelou e em seguida o cartunista Ota somou-se a novos como Joaquim Marinho, e depois Otacílio D’Assunção, Arnaldo Jabor, Erika Cardoso, Roberto DaMatta e principalmente Gonçalo Júnior que o sugeriu como simpático liberador da libido nacional. Na sequência da consagração pública de Zéfiro, destaque desafiador deve ser dado ao documentarista Silvio Tendler, que produziu um filme, “Em busca de Carlos Zéfiro”, dando luz à trajetória do senhor pornógrafo. Aliás, mais do que isso, pelo cinema, Tendler desnudou um moralismo crônico entre nós, evidenciando o impacto inegável dos “Catecismos” na formação de influentes personalidades da nossa cultura.
Zéfiro faria 100 no próximo setembro e isto permite que repensemos o papel da censura no Brasil recente. As repetidas interdições da divulgação da trajetória de Caminha revelam a resistência do conservadorismo de nossa sociedade, que ainda se aquieta na hipocrisia expressa no não reconhecimento da expressão de Zéfiro como tipo histórico, aqui saudado como nosso “sacana pertinente”.