Imaginemos “atualizações” de trabalhos clássicos. Na pintura, em nome do combate ao preconceito de cor, banir a extensa série “Mulatas” de Di Cavalcanti. O polêmico “Homem amarelo” de Anita Malfatti deveria ser retraçado em coloração e moldes helênicos? De Gauguin (que era mestiço peruano/francês) suas “taitianas” teriam o morado da pele tingido de tons claros, certo isto? E os demais temas ditos polêmicos? “O sono” de Coubert com duas mulheres se entrelaçando e “A criação do mundo” com exposição exuberante do órgão sexual feminino, deveriam ser banidos? Aliás, lembremos dos protestos contra Rembrandt pelo “Monge num campo de milho”, gravura vetada sob o crivo de “desvio”. Michelangelo legou várias cenas de beijos gays na cúpula da Capela Sistina, vamos mitigá-los? O que fazer com a infinita representação de nus bíblicos e mitológicos constantes de incontáveis museus mundo afora?
Detalhe da obre da Michelangelo na cúpula da Capela Sistina
No âmbito da escultura, a audácia mais comentada é de Bernini, com o incrível olhar lascivo expresso no “Êxtase de Santa Teresa” – que alguns sequer admitem em um altar – heresia? Valeria pagar supostos politicamente corretos, moralistas, em nome da “evolução dos tempos” ou combate a preconceitos? Que fazer então com os desenhos eróticos japoneses, com as ilustrações do Kama Sutra indiano, com a Suite Vollard de Picasso, cancelar? E com as inscrições nos muros recuperados de Pompéia; com as audaciosas montagens de Alexandra Rubinstein propondo visão feminista do papel masculino na relação sexual; com as fotos sensuais de Henry Cartier-Bresson?
Seria o caso de cancelar a Suite Vollard de Picasso
E nas músicas, deveríamos silenciar as deliciosas marchinhas de carnaval – Braguinha, João Roberto Kelly, Mário Lago – e negar “Saudade da Amélia”, “Aurora”, e mais objetivamente “Mulata assanhada”, “O teu cabelo não nega”, “Nega do cabelo duro”? E que dizer de “A cabeleira do Zezé”, “Maria sapatão”, “Índio quer apito”, “A pipa do vovô”, e do recorrente “Você pensa que cachaça é água”? Estas, entre centenas de outras peças transpiram provocações e picardia que se presentificam afetivamente na memória coletiva, replicando o que acontece no teatro, cinema, novelas, óperas, revistas.
Escondem-se nos processos seletivos moralizantes, estratégias pouco discutidas, mas necessárias porque reveladoras de políticas e polícias culturais. Em vista de triagens multiplicadas, pergunta-se dos acervos que não compõem a cultura chancelada, seriam desmerecedores de acesso público? Quem decide sobre tais critérios? No geral, contudo, cabe uma questão que não pode mais ser reprimida: como entender a arte fora de seus propósitos questionadores, despistados de nuanças subversivas, transgressoras, danadoras do limite da padronagem? É exatamente seu germe provocativo que instiga, e é por isto também que tanto se quer enquadrá-la.
Estado, igrejas, instituições de ensino, insistem em tutelar a produção e consumo artísticos em geral. Muitas vezes, em nome de sua promoção ou do patrocínio criam-se mecanismos de triagem, e então o veto se apresenta como solução implacável. A qualificação da arte oficial, por séculos se vale de regras disciplinadoras para definir o que pode e o que não deve ser considerado aceitável, conveniente, oportuno. Tudo em nome da sacrossanta moral e dos bons costumes. E crescem leis justificadoras de limites, proibições, banimentos. Isso, diga-se, é estranho no contemporâneo, mas ainda mais em expressões do passado, sugerindo releituras, reescritas e edições. Em nome de ressignificações bastardas não se medem esforços para violências inclementes, sempre idiotas.
Seria heresia admirar o “Êxtase de Santa Teresa” de Bernini?
O caso da literatura, no conjunto de manifestações censuráveis, por sua gênese inerente à estruturação da sociedade, potencializa complicações, pois são operadas em nome de causas justas e de direitos humanos. Suponhamos, por exemplo, acabar com a discussão sobre “preconceito de marca” em “A escrava Isaura” de Bernardo Guimarães, ou ainda refazer o delicioso perfil de Gabriela (que afinal só se casou porque um árabe, seu Nacib, a aceitou). Vamos “corrigir”, ou “passar a limpo”, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Rubem Fonseca, Rose Marie Muraro, Cassandra Rios, Zéfiro? Discutir ou cancelar, eis a questão! Aliás, que dizer de nossa literatura nacional inteira onde poucas negras ficam grávidas, não se casam, não constituem famílias? Vamos execrar esses livros, ou pelo contrário, vamos abri-los para discussões sobre o que era e o que é hoje?
O revisionismo tem estrada garantida nos debates sobre gênero e raça, e assim, travestindo-se de tema da hora, se alça à condição de mutilador autorizado. E que se danem os anacronismos, ou seja a relação com o tempo da produção artística. Sob tal pressuposto lembremos que a Bíblia contém 23 menções valorativas do consumo do sal – “voz sois o sal da terra” –, tais passagens deveriam ser modificadas frente a condenação do consumo de sódio? É, aliás, exatamente pela adequação da obra ao seu momento histórico que se pretende ferir a discussão, e nela perguntar por que Monteiro Lobato tem sido tão vitimado? Bem, este é outro debate e merece reflexão específica, mas vale destacá-la na cultura do cancelamento. E cabe devotar atenção a esse tema como pretexto para discussões sadias porque exigentes de conhecimento histórico e de bom senso.