Lindo demais!… Sim, em tempos de tanta desvalia, de ódio detalhado em palavras e gestos obscenos, de negacionismos estridentes e agressões às artes, de combate à inteligência e ao bom senso, de luto e choro, em tempos assim é bom celebrar o dia do Saci. Catarse. Catarse-se. Catarseemo-nos todos, juntos. E com a memória permitida pela esperança, flanemos no devaneio de uma era em que nossa cultura se via feliz, criativa, marota. Resenhando o que fomos, na intimidade do melhor imaginário, prefiguremos lendas, outros mitos não o que agora se pretende. E então soltemos a imaginação constrangida para, no lugar, dar movimento ao popular que habita nossa autenticidade coletiva. E eis que o Saci pode nos levar para regiões anteriores. Como tornou-se bom o ninho das utopias amanhecidas!… Nessa viragem, o Saci ganha lugar-guia e faz-nos sonhadores. Sabe, fico meio bobo pensando na matreirice de suas aprontações, nas delícias do jeito safado que achou para sempre incomodar nossa alma de vocação conformada. E então lanço-me solto em busca de razões que explicam o seu e o nosso jeito brasileiro de ver as coisas.
Reza a tradição que há três pistas identificadoras da origem do Saci: indígena, europeia e africana – ou de todas misturadas -, filtrando nossa cultura. Se nativa, vinda do Pantanal guarani; se europeia, tanto de raiz nórdica (pelo barrete) ou da herança portuguesa (da brasa nas mãos como teatralizou “o judeu” Antônio José da Silva no “Obras do diabinho da mão furada’”); se africana, colorida na pele tonalizada. E haja tradição oral. De todas as estratégias, porém, uma é mais poderosa pela argúcia sutil. Paradoxos, pois pelas músicas pode-se pensar na conquista de nossas almas. Ah, o cancioneiro sobre o Saci!…
Antônio José da Silva autor de “Obras do diabinho da mão furada’”
Pode-se pensar que são três os caminhos da sedução musical sacicizada: o erudito, o popular e o infantil. A música, diga-se, foi importante instrumento na reserva de memória afeita ao mais autêntico ethos brasileiro. Em 1912, por exemplo, Villa-Lobos compôs o “Saci” como parte de peça inspirada em nosso imaginário; isto, diga-se, uma década antes da Semana de Arte Moderna. Na mesma chave erudita e em continuidade, Francisco Mignone produzia um artefato com o mesmo mote. Juntas estas, entre outras produções “clássicas”, espelhavam um projeto mitológico coerente com o que se fazia mundo afora. Na mesma linha, em 1922, Edmundo Villani-Cortes compôs para piano uma espécie de ópera em frações: “Primeira folha do diário do saci” e “Terceira folha do diário de um saci” (para flauta) e “Sétima folha do diário de um saci” (para contrabaixo).
O grande legado musical sobre o Saci, contudo, se deu na passagem do erudito instrumental para o popular cantado, e isso se inaugurou em 1909 com Chiquinha Gonzaga que cantou com a dupla Os Geraldos “Saci-Pererê”. Em 1913, a polca “Saci” de J.B. Nascimento, foi tocada pelo Sexteto da Casa. Como toada, em 1918, Gastão Formenti compôs “Saci-Pererê”, de autoria de Joubert de Carvalho. E daí para a frente várias outras se perfilaram em diferentes ritmos nacionais: marchas, sambas, baiões. Talvez, alguns destaques ilustrem a popularidade e recepção do tema pelo público urbano que passava, gradativamente, a consumir gravações: Zé Pagão & Nhô Rosa cantaram “Saci-Pererê”, de Ivani, em 1949; Inhana fez enorme sucesso com o baião “Saci”, de Antônio Bruno e Ernesto Ianhaen, em 1956; a dupla Torrinha & Canhotinho fez “Saci-Pererê”, em 1959; mas quem “estourou” mesmo foi Araci de Almeida com “Saci-Pererê”, marcha de Henrique de Almeida e Rubi, gravada em 1960.
Demetrius, cantor de sucesso da Jovem Guarda
Atravessando o tempo, em 1961 apareceu uma novidade vocalizada por Demetrius “Rock do Saci”, de J. Marascalco e Richard Penniman. O limite dessa saga, contudo, se deu em 1972, com o Tom Jobim na “A águas de março”, lançada em 1973, interpretada por Elis Regina. Grupos e populares passaram pelo tema que, dentre outros, destacam-se o Secos & Molhados, Falamansa, Cheiro de amor, bem como Kleiton e Kledir no grupo Almôndegas que, aliás, colocou a canção como tema da telenovela “Saramandaia” em 1975.
Este breve itinerário não poderia deixar de lado a intenção pedagógica, inconsciente, da apropriação do Saci para crianças, e nesta rota nada mais foi eficiente do que a tomada do tema assumidos pela televisão. Enredos dramatizados e musicados dimensionaram abordagens como a composição gravada por Guto Graça Mello que atraiu cantores reputados como Jorge Benjor e Carlinhos Brown. E as variações se multiplicaram com Boca Livre gravando “Saci” de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos, 1980); Ruy Maurity com “Sacirerê” de Maurity e Zé Jorge, de 1984; Gilberto Gil com “Saci-Pererê” de 1980; Bia Bedran com “Quintal” de 1992; Mônica Salmaso com “Saci” de Guinga e Paulo César Pinheiro de 1998; Gal Costa o festejou em “Grande Final” de Moraes Moreira de 2004; A Cor do Som com “Dança, Saci” de Mu Carvalho, em 2006; Flávio Paiva em “A festa do Saci” de Paiva e Orlângelo Leal, de 2007.
Chiquinha Gonzaga
Enfim… Enfim, eis aí o Saci nos envolteando, permitindo memória perturbadora do que viramos, e num pulo redentor convidando-nos para desengarrafá-lo, solto no ar brasileiro que o quer livre, leve a sábio do próprio destino. Que assim seja, pois é com a recordação do que fomos que continuaremos a ser o que queremos. Que revivamos o saci que somos e não o perfil sem graça e sem tradição, este Brasil sem cultura, pobre, burro, sem memória. Bom dia do Saci.