Ledo engano pensar que a crescente onda contra o racismo no Brasil é fenômeno recente. Nada! A luta é antiga e cheia de nuanças que vão bem além de enquadramentos esquemáticos, querelas que se perdem em detalhes conceituais ou indicações de exceções. Hoje fala-se muito em referências, mas algumas delas poderiam ser recuperadas a partir de situações empalidecidas, nem sempre evocadas. E convém garantir de saída que o problema é não só do povo preto. Não mesmo, pois racismo é doença do tecido social. Todos estamos implicados e é tarefa coletiva apagar esta sombra que nos persegue historicamente.
O adjetivo “estrutural” tem qualificado o debate, mas ele não é suficiente para explicar atitudes que vêm ganhando regramentos, denúncias e condenações. Isto, aliás, é quase nada. O caminho da consciência antirracista é manhoso e exige argumentos capazes de extrapolar o espírito das palavras. Precisamos estudar, pesquisar, apontar gargalos e assumir estratégias eficientes no combate ao vexaminoso comportamento perversamente colado na nossa formação desde o amanhecer colonial.
O chamado racismo estrutural ainda não explica o suficiente
Com mais vigor, o combate ao racismo despontou no Brasil a partir dos anos de 1930. Em 1937, a ditadura do Estado Novo tratou de mitigar conquistas, mas bastou a fase democrática se abrir depois de 1945 para que o combate retornasse, implicando inclusive discussão na Constituinte de 1946, ainda que as propostas não lograssem êxito. De toda forma, novas andanças sucederam, algumas até notadas internacionalmente, quando em 1948 o Brasil fez-se signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em termos práticos a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 deram contorno nacional definitivo ao problema. Nesse esforço, a Constituição de 1988 se fez grandiosa e vem sendo melhorada progressivamente.
Todo este tortuoso trajeto teve momento fatal na Abolição dos escravos, recurso espetaculoso que pouco – ou nada – resultou em favor da inclusão dos cerca de 700 mil libertados no 13 de maio de 1888. O vazio de programas legou a população liberada à própria sorte. Some-se a isto resultados da decadência do café, esgotamento das instituições civis, prejuízos acumulados pelas guerras do Paraguai e Canudos, deslocamentos populacionais. A iminência do fim do Império suscitou a Proclamação atabalhoada da República que, aliás, teve um militar, monarquista, como líder.
Lei Afonso Arinos foi aprovada em 1951
No ambiente confuso da mudança de regime, as urgências demandavam reordenamento das elites e a obsessão pelo poder empurrava os despossuídos, principalmente os negros, para as periferias onde estão, em maioria desproporcional até hoje. Os dados são irrefutáveis: 54% da população é negra, segundo dados do IBGE; o número de encarcerados pretos ou pardos excede 67%; os favelados somam mais de 74%, os magistrados não perfazem 2%, e 6 em cada 10 crianças mortas na primeira infância são negras.
Nem é preciso insistir na originalidade do comportamento cultural do nosso racismo. O disfarce sempre foi marca que nos mostrava como estrangeiro o autêntico preconceito. Assim como decantávamos nossa, “tolerância” (palavrinha complicada esta, não?!) nos era fácil indicar que nos Estados Unidos sim havia racismo. A constatação das diferenças entre o entendimento distintivo do tratamento racial, contudo, pode ser mais bem avaliado quando são considerados momentos fundamentais da exposição pública do problema. E nada mais explícito que contrastar o combate ao racismo aqui e alhures.
Katherine Dunham, famosa bailarina norte-americana nos anos 1950
Há um caso notável na experiência do nosso racismo que se presta a isso. Corria o ano de 1950, no mês de julho, numa noite particularmente fria, a dançarina norte-americana Katherine Dunham se apresentava no Teatro Municipal em São Paulo. Com sua equipe, fizera reserva no Hotel Esplanada, então o mais reputado da capital paulista. O espetáculo era aguardado, pois remetia a exibição incomum entre nós de danças africanas em espaço da elite requintada. Além disto, a apresentação era comandada pela mais aclamada ativista e respeitada antropóloga militante do movimento em favor do combate ao racismo nos Estados Unidos. Barrada no hotel por ser “de cor”, a atriz, que era convidada oficial da cidade, não perdeu a oportunidade para denunciar o caso. Chamando a impressa para colocar à público o vexame, denunciou o incômodo taxado como “ofensivo à dignidade humana”. O Correio Paulistano deu destaque à notícia que, por sua vez, provocou alguém como Gilberto Freyre então deputado – o mesmo que caracterizou a “democracia racial” – a considerar o caso como ultrajante ao ponto de “amesquinhar-nos em subnação”.
Como rastilho de pólvora, o assunto mexeu com os brios legislativos ao ponto do também deputado Afonso Arinos apresentar um projeto agravando o conceito de preconceito racial, elevando-o à categoria de contravenção penal, sujeito a pagamento de multa e/ou cumprir pena de prisão até um ano. O ato foi aprovado com o nome de Lei Afonso Arinos que, mesmo vigorando, jamais atingiu efeitos minimamente desejáveis. Daí em diante leis se complementaram até o presente quando, finalmente, vimos aprovada no Senado Federal, dia 18 de novembro último, a proposta que equipara “injúria racial” (ofensa dirigida a uma pessoa em particular) à condição de “crime racial” (ataque que atinge a coletividade), com pena de dois a cinco anos de prisão e pagamento de multa.
Andamos? Esta é a pergunta que temos que fazer. Se a consideração remeter ao acatamento legal, até admitimos concordar, mas se forem consideradas as mudanças nos comportamentos culturais… Ainda o caminho é longo, mas sigamos imaginando que dias melhores virão e que os próprios negros são arautos da diminuição das diferenças insuportáveis.