Para meu filho Pedro
Como a maioria das pessoas, procurei fazer o melhor que pude durante a pandemia. Obedeci as regras de prevenção, critiquei o governo central, busquei consolar amigos e parentes machucados por perdas. Fiquei muito em casa e busquei aproveitar o tempo para arrumar meus interiores, pessoal ou não. Deixei o lar um brinco, reavaliei meus objetos de adorno e cuidei dos livros como fosse deixá-los prontos para uma exposição. Em termos de agrado pessoal, fiz o que mais gosto: cozinhei bastante, atualizei correspondência, li e escrevi muito. Escrever e ler, aliás, estiveram entre as melhores ocupações.
O tempo passou, lento e tenso, mas foi indo. Procurei distrações gerais como consertos domésticos, mas minha tendência mascate fermentava andanças. Procurei não tocar em malas e nem em roupas próprias para saídas. Consegui em parte, ainda que desse escapadelas em buscas pelo Google. Felizmente o milagre das vacinas se anunciou quando os resultados propuseram o que se chamou de “novo normal”. Progressivamente fui me deixando provocar por viagens mais possíveis a cada dia.
Devo dizer que em março de 2019 eu tinha passagem comprada exatamente para a China, país que cobiçava conhecer há anos. O adiamento foi obrigatório, ficando porém o crédito para outras aventuras. Tentei várias outras viagens que sucessivamente foram canceladas, mas por fim uma deu certo: a travessia do Atlântico partindo da Espanha. O itinerário me era algo estranho, com destino final Santo Domingo, na República Dominicana. Fazer o caminho de Colombo foi desafiante. Usei a imaginação para pensar no que teria sido o mesmo trajeto cinco séculos atrás. em condições completamente diversas da que fiz em confortável navio.
Jelson Oliveira, autor de “Filosofia da viagem”
Houve, contudo, um acontecimento corriqueiro que me arrebatou mais que outros: a leitura de três livros. Já havia passado pela delícia de ler em pleno mar, mas desta vez experimentei uma espécie de êxtase. Comecei por um texto que já conhecia, a “Filosofia da viagem” escrito por Jelson Oliveira. Trata-se de um périplo sobre o incessante movimento humano. Situado entre os temas menores da filosofia, a reflexão atravessa uma das metáforas mais conhecidas de todos os tempos: a vida como trânsito. Depois de rápida passagem pela história, o autor declina visões de vários autores que vivenciaram a questão dos deslocamentos humanos: Sêneca, Hans Jonas, Descartes, Montaigne, Rousseau, Voltaire, Shopenhauer, Nietzsche, Camus e Derrida… Se pudesse resumir em uma palavra, diria que se trata de um livro incrível. Discutindo temas como o estado de espírito para viagens, a busca de surpresas e controle das emoções em trânsito, as reações às despesas e hospedagens, tudo nos convida à compreensão de travessias em sentido histórico. Desde a expulsão do Paraíso, da desavença de Caim e Abel, passando pelos penitentes da Antiguidade e da Idade Média, prezando o significado das Grandes Navegações até a Modernidade turística, tudo se ativa como motor explicativo do estágio atual dos movimentos humanos.
Gay Talese foi articulista do The New York Times
Mal terminei o livro, abri-me para outro igualmente fascinante. Sabe a sensação do “não li, já gostei”? Pois é, foi assim com “O Voyeur” de Gay Talese, o inventor do jornalismo literário. E a história é para quem não teme rasgos moralistas. As aventuras de um personagem, que existe na vida real, garantem o tom de reportagem do premiado autor que revela um tal senhor Gerald Foos, personagem que, por 25 anos, “observou” o comportamento de hóspedes de um motel no estado do Colorado, cuidando de anotações sobre as atividades sexuais dos frequentadores. Construído um posto secreto de observação secretíssimo, manteve um diário que enviou a Talese, então articulista do The New York Times. E que histórias registrou! Todas com boa pitada de pretensão científica, pois dizia-se pesquisador do comportamento humano, porém, com uma variante inexorável: via a intimidade das pessoas sem que elas soubessem. Mas não é só “sacanagem” que intriga neste livro. Talese retraçou a biografia de Foos, revelando um personagem único e apaixonante.
John Colapinto escreveu “Quase autor”
Deste passei a um terceiro livro intitulado “Quase autor”. Devo dizer que depois das leituras anteriores achava que nada superaria meu deleite. Engano cruel. Eis que o texto assinado por John Colapinto me captou desde as primeiras páginas. E como! O livro surpreende o leitor a cada página, tirando o fôlego pela sucessão de fatos incríveis. O relato conta as peripécias de Cal Cunningram, jovem que, pretendendo ser escritor, mudara-se para New York onde dividia apartamento com um colega, Stwart, estranhíssimo estudante de Direito, também obcecado por Literatura. Buscando histórias reais, Cal revelava ao confidente o uso da cidade como uma espécie de laboratório para eventual trama, mas, no entanto, a frustração se lhe abateu depois de dois anos sem conseguir produzir uma página. Foi assim que um dia, meio que por acaso, aproveitou que o companheiro deixara o computador ligado e resolveu mexer em seus escritos, e eis a grande revelação: Stwart havia redigido um excelente romance, contando as loucuras sexuais que ele, Carlo, lhe confidenciava. Não bastasse, por coincidência, o Stwart morre atropelado naquele mesmo dia. A continuidade dos acontecimentos autorizou Cal a oferecer o livro para uma editora que faz dele estrondoso sucesso. Tudo corria bem quando já rico, no auge da fama, lhe aparece uma desconhecida, namorada do falecido, que detinha os originais do livro. Pronto, o problema estava criado. Pressionado, restava a Cal resolver a questão que impulsionou o fraudador a pensar em matar a concorrente. Não vou contar o final da história, mas não posso de deixar de recomendar a leitura.
O que aprendi com esta viagem? Muito! E, mesmo para quem não está viajando, sugiro usar as três indicações como passagem para uma viagem inesquecível.