Andava meio triste, algo saudoso da vida rotineira de antes do Covid. Bateu saudade dos parentes, amigos, alunos… Dei asas a mais alguns maus pensamentos que rondavam meu inconsciente e para dissipar o climão que se anunciava resolvi ir às compras. Demorei o mais que pude e depois, distraído na fila do supermercado, meio sem pressa para voltar, ouvi uma conversa dessas que acabam por fisgar nossa atenção. Tratava-se de uma senhora muito bem apessoada que dizia para uma jovem acompanhante: olha, a preguiça é o maior e o melhor dos pecados, pois quando se apossa de uma pessoa, todas as outras faltas deixam de ser praticadas. Nossa, pensei!… E foi o que me bastou para rogar que a espera fosse longa.
E os argumentos prosseguiam compondo instigante investida teológica feita às avessas. Com certa maestria didática, a altiva senhora pregava que alguns pecados capitais isentavam outros e até os redimia. O exemplo seguinte explorava a “inveja” que, segundo a exegeta de supermercado, era responsável pelo progresso, pelo impulso pessoal para a melhoria de vida. E os casos usados eram convincentes “veja bem, se alguém tem inveja do vizinho, que tem um carrão, casa na praia, viagens fabulosas, por inveja legítima, ele vai lutar para ter o mesmo, ou até mais”. Fiquei ouriçado com a clareza…
Confesso que me continha para não entrar no papo animado, pois ao se referir a outro pecado capital, a “gula”, o argumento exagerava na melhoria da culinária civilizatória. E não é que os fundamentos da senhora faziam sentido. Com um gesto exuberante, ela apontava para as prateleiras ao lado afirmando que nada daquilo existiria se não fosse a tal da gula. E eu, com o pescoço meio inclinado concordava lembrando-me de reclamação recente sobre o exagero dos programas sobre comida, na televisão. Aliás, fiquei irritado ao entrar em um site de minha livraria preferida e me deparar com o número multiplicado de lançamentos de livros de receitas. Além disso, o próprio supermercado justificava a questão.
E a “avareza”, exclamava a experiente dona da conversa, “é responsável pelo avanço da economia, pelo sucesso das empresas que animam o mercado”. Eu lembrei-me da expressão “pão duro” e imediatamente recordei de uma situação em que ruminei raiva de um companheiro que, ao compartir conta coletiva depois de lauto jantar, fazia questão de contar centavos. E me veio à cabeça a indignação por ser exatamente ele o mais rico do grupo, dono de um próspero comércio… seria por isto?!
Para minha desgraça, a fila corria muito mais ligeira do que no comum das vezes, e logo pensei na “ira”. Sim, fiquei irado por não ter acesso aos demais informes passados pela abalizada defensora das nobres virtudes dos pecados capitais. Ao olhá-la já no caixa, passando os produtos comprados, resolvi dar sentido aos ensinamentos e admiti que a ira que sentia pela interrupção da conversa (alheia) era algo positivo, pois na solidão desses dias pandêmicos, no isolamento que a que me proponho, daria estrada a uma possível depressão e, assim resignado, até me surpreendi com a certeza que seria melhor ser colérico, ter uma explosão passageira, do que me abandonar deprimido.
Pois bem, as duas se foram e eu fiquei com o tema na cabeça. E foi assim que pensei no sentido da “luxúria”. E me veio imediata a relação que fiz com os livros de Philip Roth (“Complexo de Portnoy”), de Vladmir Nabokov (“Lolita”) e até dos clássicos Diderot, Sade e principalmente de Georges Bataille (“História do olho”). Aliás, só por essa seleção os pecados da carne estariam absolvidos.
A “soberba” exigiu que me posicionasse favorável ao orgulho, e até julguei que Santo Tomás exagerou ao dizer que é o maior dos pecados. Fundamentei meu ponto assumindo que para ser orgulhoso – e do orgulho ir para a soberba – era preciso ter qualidades exaltadas, pois caso contrário o personagem não seria levado à sério. Bem, estava perdido nessa trama quando me dei conta de que tudo havia começado com a “preguiça” e que ela era realmente a grande responsável, e, por fim, concluí que sem ela não haveria nenhum dos outros pecados. Como dá muito trabalho e/ou exige-se engenho, os demais delitos capitais todos seriam inexistentes se a preguiça dominasse. Pensei em reagir a isso tudo, em retomar a legenda cristã, mas, sinceramente, me deu enorme preguiça.