É possível ser gordo e feliz? Reduzindo o âmbito da questão pode-se simplificar perguntando se é possível ser gordo e gozar a vida. É? Sinceramente, queria que Shakespeare respondesse pesando na mesma balança que eu ou algumas amigas “fofinhas”. E fico perplexo com os paradoxos do mundo moderno que reprova os rechonchudos e promove os contrários, tudo ao mesmo tempo. O padrão magreza é proposto sem trégua e quanto mais ostentado, mais gordos aparecem buscando sua antítese.
Repararam o número de programas sobre culinária? E de maravilhosos livros de receitas com variedades inacreditáveis? Imaginem que existe um site alertando para “mil receitas de miojo”, pode? Contem e vejam que não há hora do dia, espaço de jornal ou revista que deixe de indicar restaurantes da moda, prato destacado, um ou uma chef fenomenal. Famosos dando dicas.
A balança está errada? Eis a questão
Dia desses a insônia me atacou e, com a televisão ligada, varei a noite aprendendo comida tailandesa, nórdica, peruana, nordestina… Percebi o risco da situação quando – imaginem – para homenagear a Ucrânia, o chef apresentou os passos para o melhor “Frango à Kiev”. Nossa! De toda maneira, foi uma viagem planetária em torno da gastronomia. O pior é que me sinto um inútil ao tentar executar tais iguarias “fáceis”, “gostosas”, “práticas”. Sinceramente, acho que cada programa desses deveria indicar um psiquiatra disposto a atender os fracassados, aqueles que como eu tentam, mas…
Viram quantos novos produtos são lançados nos supermercados, anunciados pela mídia, colocados em outdoors, estampados em todos os meios de comunicação? E as degustações deliciosas, experimentaram? Os calendários festivos nos entopem com chocolates, perus, bacalhaus, e haja temperos, azeites, condimentos. Sal tem do Himalaia, dos Lagos Andinos, do Deserto de Atacama e do Saara. Pimenta da Síria, da China, branca, preta, biquinho, malagueta. Macarrão agora existe com ou sem glúten, de beterraba, de couve, de cenoura. Arroz? Arroz tem integral, parboilizado, arbóreo, basmati, cateto, preto, vermelho. No tempo de minha mãe, para tempero usava-se alecrim, cheiro-verde, louro, manjericão. Agora temos urucum, kümmel, zedoária, zimbo, e o deliciosamente estranho ylang-ylang. Nem vou falar dos vinagres e nem entrar na lista de vinhos, pois ficaria devendo aos entendidos sempre de plantão alertando para minha ignorância.
Imagem que ninguém gosta de ver no espelho
Que dizer dos doces exibidos em vitrines de padarias, confeitarias, casas de chá? Não bastassem a quantidade e o colorido, essas belezas são verdadeiras provocações que enchem os olhos de desejos, a boca de vontades e esvaziam nossos bolsos emagrecidos pelos ajustes salariais. É lógico que dispenso referências a produtos ultra processados que fazem mal a saúde mas vitaminam lucros empresariais: bolachas, biscoitos, aperitivos. Refrigerantes e até sucos, sem comentários. A fomentar tensões, o alerta é dado por todos os lados, bem se sabe, e mesmo a sabedoria popular alarma dizendo “o que não mata engorda”, e até para reforçar a comilança vale o apoio filosófico nietzscheniano pontificando “o que não provoca minha morte, faz com que eu fique mais forte”. Conclusão, seja pela via popular ou pela cultura erudita, coma!
Nem a filosofia ajuda nesses momentos
A contramão é bem trafegada também, diga-se, com dietas que vão das fases da lua a jejuns, da alternância de alguns produtos à eliminação radical de outros. Nada salgado, nada doce, nada temperado, nada, nada, nada… Isso combinado com exercícios físicos torturantes, academia onde os acadêmicos não estão preocupados em virar páginas ou arrumar livros e sim em levantar pesos, contorcionismos. Esteiras… Além de tudo isso, há um fator que me incomoda mais pois, historiador, sou obrigado a considerar que houve períodos em que os quilinhos a mais eram sinal de beleza e saúde, isso em contraste com os esquálidos que, raquíticos, eram aproximados da tuberculose.
Por favor, não me recomendem meio termo. Sei bem da temperança e do comedimento, mas, a esta altura da vida, divisando a nona década, o melhor que posso fazer é aproveitar e assim vou sonhando com uma boa picanha, com um torresminho bem feito, com uma lauta feijoada. Pensando nessas coisas, acho que a pergunta para fazer a Shakespeare seria um pouco diferente: ser feliz ou ser magro? Gozar a vida, tomar uma boa cerveja com pastel, kibe frito e croquete, pode?