Já fui criticado por falar muito sobre a morte, como se não fosse tema oportuno, palatável ou apropriado. Na realidade, independente de ler ou escrever sobre o assunto, sou fascinado pelo tal “adeus definitivo”. Nem interessa supor a morte em desdobramentos prováveis, tanto como fim categórico ou passagem para outra vida. De um ou de outro jeito, “fechar os olhos para sempre” implica acabamento, arremate, conclusão de uma fase que, segundo Fernando Pessoa, marca um tempo que justifica o sentido da experiência individual “se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tenho só duas datas: a de minha nascença e a de minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus”. Simples assim.
Fernando Pessoa: “Tenho só duas datas”
Tanto para os que prezam ou não a morte como condição terminal, a dúvida desafiadora recai sobre dois pontos principais: o momento conclusivo e os possíveis desdobramentos: pó/cinzas ou reencarnação. Afinal, “o depois” haverá? Gostando ou não de tocar no assunto, respondam se não preside algo de arrebatador nessa meditação? Voltaremos? Quando? Como? Mesmo rezando pouco – simples “católico cultural” que sou – me vejo comovido a cada vez que recito o final da Ave Maria: agora e na hora de nossa morte, amém. Não é lindo?… Sabe, em comunidade, quando este trecho se anuncia, resvalo o olhar para as pessoas ao lado e sempre fico impressionado com a passividade rotineira que sequer permite nuançar a gravidade das palavras: agora e na hora de nossa morte, amém... Reencarnando ou não, com virtudes ou defeitos, morremos para esta vida. E isto é solene.
Pois é, houve um tempo em que a morte súbita me parecia o ideal. Então, meio encantado, admirava narrativas sobre pessoas que, assim do nada, “apagavam”. E coleciono casos de tipos que foram tirar uma soneca depois do almoço, ou na naturalidade da noite, e… Ou daquelas que assistindo um programa da TV, ouvindo um rádio, talvez uma romântica canção, e… Há notícias de fervorosos torcedores que morrem na euforia de um gol, ou pelo contrário, motivados pelo pesar de fracasso de seu time.
Uma vez contaram de uma senhora que morreu na cadeira de dentista, confesso que achei prosaico demais. Tem os coléricos que, enfurecidos, morrem num acesso. Idem entusiastas do sexo; idem trabalhadores compulsivos; idem políticos ardentes… Ah, e convém falar dos que perdem a vida em acidentes terríveis e nos deixam perplexos e cativos de despedidas convenientes…
Fico enternecido com a narrativa de uma avó que prevendo um não amanhã separou a roupa, preparou tudo e depois do banho, vestiu-se e morreu arrumadinha, penteada, perfumada até. Sim, há algo de beleza mórbida nisso, mas é inegável a vocação de grande parte das pessoas para “morrer sem sentir”. Os argumentos, aliás, são irretocáveis: não quero sofrer dores, nem dar trabalho a outrem. Cristalino, né?!… E eu, juro, pensava assim, desse jeitinho. Arrazoava isso, mas de tanto idealizar acabei por expandir meus argumentos, e mudei. Mesmo aqueles que prezam outras existências têm que admitir a vida encarnada como etapa inevitável, com começo, meio e fim. Sendo isso verdade, a experiência vivencial faz parte da morte e essa consciência deve ser considerada em sua integridade.
Sim, é verdade que acabei por construir um falso silogismo filosófico, algo do tipo: se a morte faz parte da vida, a vida compreende a morte, então a morte contém a vida. E eu resolvi que devo vivenciar isso em sua plenitude. Afora a legitimidade de dar trabalho para os outros, os estágios terminais merecem ser experimentados conscientemente e com intensidade comunitária. Sendo isso uma condição natural, por que morrer sem dar aviso, sem se despedir, ir embora sem alarde? Sei sim que a morte é individual, mas vivemos em sociedade e queiramos ou não contagiamos a experiência dos próximos e “dar trabalho” deve ser maneira de se despedir, implicando responsabilidade, cuidado, zelo dos queridos. Sabe, fico tranquilo pensando nos olhares de comparsas que me veriam rezar a última Ave Maria, balbuciando cumplicemente aquelas palavras tantas vezes pronunciadas sem a devida atenção “agora e na hora de ‘minha’ morte, amém”.