Lembro-me de um sábio conselho do mais influente de meus professores: nunca escreva ou comente publicamente o trabalho de amigo, principalmente se for pessoa próxima. Com alguns tropeços atravessei os tempos mantendo-me fiel a esse ensinamento. O mesmo mestre, aliás, recomendava que não deixasse de expressar opinião, mas na intimidade discreta, se possível olho no olho. Isso voltou à tona frente ao filme “Saúde tem cura”, documentário produzido por Silvio Tendler, lançado no último dia 8 de junho. Confesso que dei voltas entorno de mim mesmo. Primeiro, deixei-o saber de minha emocionada acolhida. Sem muito me conter, expus minha percepção apaixonada, agradecida até. Agradecida por conseguir no espaço de uma hora e meia juntar imagens, proceder um arrolamento crítico fundamentado e, assim, apresentar o Sistema Único de Saúde (SUS) como um dos ganhos da política brasileira.
Vi o filme duas vezes. A primeira, diria, não valeu, pois, escudeiro do cineasta brilhante, encantado com o projeto iniciado na década de 1980, sabia dos riscos de minha admiração esparramada, por ele e pelo tema posto no catastrófico cenário negacionista que vivemos. Quando da segunda vez, algo mais tranquilo e pautado pela responsabilidade analítica, pude medir com régua crítica o produto que denota devotamento e vontade de conversa coletiva. Franqueado ao público no Youtube, o filme torna público o teor fermentado pela proposta. Há algo de revolucionário nisso.
Sebe “foi derrubado pela ousadia da mensagem de Tendler”
Por ter estudado toda produção de Tendler e partilhado com ele a publicação de seu “Catálogo (in)disciplinado” (Editora Lacre, Rio de Janeiro, 2019), senti-me autorizado a comentar este novo produto. E não seria para menos, posto que me estava dado o caminho natural da análise evolutiva da longa série de seus mais de 70 documentários. O encadeamento natural dos temas seletados deixa aclarada a continuidade de seu traço político e ativista e, nessa linha, “Saúde tem cura” poderia ser visto como mais um desdobramento na sequência que corta décadas, valendo-se do cinema como estratégia democrática de comunicação social.
A análise sequencial justificaria este como mais um filme de Tendler, mas há um detalhe que quebra esta lógica e diz que há no “Saúde tem cura” uma solução inovadora, derivada de diálogos recentes, particularmente depois do “Asas da PanAm”, de 2019. Agora algumas provocações subjetivas ganham relevância ético-políticas de apelo coletivo. Diria que fui escandalosamente derrubado pela ousadia da mensagem – sem nenhum pudor – conduzida na primeira pessoa. O documentário é iniciado e tem seu final na experiência pessoal do cineasta. O eu narrativo é, assim, fator decisivo no entendimento deste filme. Mas não se trata de um eu qualquer, posto que no andamento do documentário várias pessoas fiam o próprio testemunho com o SUS. É mágica a fórmula usada por ele porque resulta em um eu social e concatenado no qual todos nós somos incluídos como usuários. E Silvio Tendler simplesmente conversa com a audiência que, sem perceber, vira interlocutora de uma mensagem solar e favorável à consagração do SUS e das necessárias correções de desvios.
Há outro recurso faiscante sutilmente imiscuído no filme: o eu coletivo vira questão de política nacional e nos amarra no mesmo laço. É aí que o historiador ajuda o cineasta fermentador de provocações.
Com recurso esperto, com idas e vindas no encadeamento narrativo, Tendler vai “presentificando” o tema e insinua seu significado independente do recorte epidêmico atual. Sim, há remessas rápidas e pertinentes aos idos remotos, mas o debate sobre o papel do estado nesta história logra consistência na medida em que problemas de saúde pública alçam a responsabilidade governamental. Então, sob velhas sequelas – da epidemia de febre amarela – figuras como Oswaldo Cruz e Adolpho Lutz se colocam como precursores da questão e a vacina reponta como argumento capital do desenvolvimento do processo.
SUS é a universalidade baseada no acarinhamento dos usuários
Com cuidado e pertinência, Tendler sugere que a colocação do assunto na Constituição de 1988 correspondeu à maturidade de um caminho longo, complexo, difícil e pleno de superações. No curso da questão exibem-se problemas graves como os planos privados de saúde, a universalidade do atendimento interclasses, os critérios e orientações dos orçamentos públicos e, sobretudo, o acarinhamento dos usuários. Entre temas tão vertiginosos, o documentário não se deixa derruir pela sedução de partidarismos ou apadrinhamentos oportunistas. Pelo contrário, ao saudar o SUS mostrado também por especialistas no assunto, o documentarista mais do que ressaltar a continuidade sugere a participação da sociedade civil em um envolvimento democrático e participativo intenso e continuado.
Enquanto alinhava minhas ideias, rondava-me o conselho cauteloso do velho mestre: “não comente publicamente o trabalho de amigos”. Foi preciso destituir minha condição de afeto amistoso e assumir o posto de cidadão para, enfim, contestar o epiteto que reduz Silvio Tendler a “cineasta dos vencidos ou dos sonhos interrompidos”. Com ele avançamos! Com ele nos animamos ganhar a causa do SUS como conquista do povo brasileiro.