Por acaso – se é que acaso existe – de quando em vez, volta-me às mãos uma fotografia do antigo Largo do Mercado. Por mais que tenha intimidade com a imagem em preto e branco, à cada olhar emoções nostálgicas se remoçam e me transportam. Fortes emoções, aliás, daquelas que exigem tempero afetivo e tolerância para suportar alterações. Pedaço lindo era esse, cromo de uma vida crescida no cenário hoje tão enfeiado pela gana traidora do passado. E não haveria de ser de outro jeito posto que os contornos antigos agonizam num presente despersonalizado, rascunho mal resolvido na ilusão de progresso frustrado.
Vendo a mesma foto – creio ser dos anos 1950 – sou tomado pela inocência que brincava no menino despreocupado com o devir. Coleciono lembranças pontuais que, contudo, se emendadas formulam uma história perfumada. Entre tantos comércios, lá estava o de meu pai que se abria para um largo encantador, bem em frente à entrada principal do Mercado Municipal. Era aquele o meu paraíso, composto por lojas de brinquedos, chapelaria, ponto de carros e ônibus, vidraçaria…
O que não constava dos planos futuros era o resultado de uma plástica urbanista que se impôs desfigurando o que existia. O resto do antigo obelisco, posto abaixo sem pudor algum, expõe a marca do ilusório desenvolvimento prometido em nome da modernização. Entre o triste presente e a foto revela-se o desafio de entendimento do que ocorreu dentro e fora dos muros do Mercado.
Foto antiga da Praça Campos Salles ou do Mercadão
É claro que me faz sentido os efeitos perversos dados pelos recortes seletivos da memória. Sei sim que a lembança de um certo passado desloca para um irrexistível “pretérito perfeito”; mas não resisto. É com certa cerimônia, pois, que pela fotografia, me permito flanar. Cores e cheiros ambientam recordações grudadas em minha evocação. Aquele, diga-se, era um tempo muito mais obediente às estações do ano e tudo exuberava nos limites das épocas do ano. Então, frutos e frutas se rendiam às temporadas: havia um tempo para as melancias, goiabas, pessegos, outro cheio de jabuticabas, amoras. A atravessar eras, tínhamos os docinhos caseiros – rapaduras, melados, canjiquinha. Sabe, ter morado no Largo do Mercado me disinguia dos demais meninos. Eu sabia detalhes gostosos da melhor caipiricidade.
Dentro do velho prédio de 1915, diria que tudo corria nos conformes até que, num belo dia, surgiu uma “Pastelaria chinesa”. Sabe, foi uma revolução, sinal que ameaçava a lógica tradicional e apontava para a descontinuidade do contexto externo. Eis que, não mais que de repente, um produto exótico se impunha na rotina do Mercadão: o pastel. Por certo, havia outros estabelecimentos similares – creio que a praça principal ostentou a pioneira de Taubaté – mas aquela no Mercado era impertinente e se afigurava como possível dilema no andamento geral. Até pode parecer natural hoje, mas naqueles dias o impacto da pastelaria foi enorme: como combinar o antigo com o que se mostrava estranho. Como?
Uma das pastelarias mais concorridas do Mercadão
Sem misturar o jeito acaipirado que nos distingue falar, a pastelaria no Mercado abrigou o sotaque achinesado. E não é que conseguiu! O tempo foi passando, a pastelaria mudou de lugar, mudaram também os proprietários, mas lá está a pastelaria até hoje. Com sucesso enorme, o pastel inverteu a estranheza e se naturalizou integrando-se.
Mas, na contabilidade do tempo que correu e na parcela das mudanças externas, me pergunto qual a relação final entre as partes? Mudando a fórmula da questão questiono sobre porque houve deteriorização do entorno externo ao prédio do Mercado e a pastelaria sobreviveu? E então a resposta se faz: a pastelaria, como camaleão importado, se adaptou, caiu no gosto dos fregueses, não contaminou o resto. A parte externa, pelo contrário, desfigurou o que existia e destruiu o que lhe serveria de paisagem.
O que se aprende com a constatação desse processo? Muito, principalmente que o passado pode aceitar o que vem de fora, mas com critério. Lindo lugar de memória, o nosso Mercado deixou o exótico se avizinhar. Pena que fora as cicatrizes marquem o corpo maltratado da nossa Taubaté.