Tomemos como ponto partida o pressuposto terraplanista. É espantoso, mas há no Planeta cerca de 11 milhões de pessoas que acreditam que a Terra é fixa e… plana. Deste total, 7% de brasileiros se incluem nessa lista. Há casos mais consequentes como a difusão dos efeitos “milagrosos” da cloroquina e de princípios ativos correlatos que, infelizmente, retardaram a vacinação. Nesse quesito, aliás, convém lembrar que dos cerca de 680 mil mortos na onda da Covid19, muitos teriam sido salvos – o epidemiologista Pedro Hallal diz que 1 em cada 5 vidas.
A par de tantos delírios infundados, é preciso constar que os meios eletrônicos permitiram disseminar “notícias” que, afinal, têm tudo a ver com o posicionamento de grupos talhados por messianismos desprovidos de qualidade científica. Qualquer avaliação dessas práticas exige fundamentos críticos capazes de dar musculatura ao conhecimento elaborado, melhor remédio contra a ignorância espontânea. Mas não basta constatar. Valhamos da crítica filosófica para medir a trajetória deste fenômeno nefasto que atinge também o conhecimento histórico.
Para Humberto Eco, as redes sociais dão “voz a uma legião de imbecis”
Pautemos o reconhecimento da disseminação de falsas informações nas linhas do amplo direito à opinião, facilitada pelas conquistas eletrônicas. Levando-se em conta tais fatores, o filólogo italiano, Umberto Eco, declarou que as redes sociais dão “voz a uma legião de imbecis” que, antes, não exerciam poder alargado, apenas afetando companheiros de copo e vizinhos menos avisados.
Foi pensando nisso que me veio à cabeça a alegoria proposta no texto “A Caverna de Platão”, constante d’A República que, aliás, versa sobre o governo desejável a um estado ideal. O que entra em pauta na fabulação proposta pelo pensador grego é a percepção alterada da realidade. Integram o caso alguns habitantes que, situados no interior de uma gruta escura, viriam sombras fantasmagóricas projetadas de fora para dentro. Mesmo desfigurados, tais contornos dariam sentido às percepções explicáveis a partir dos lugares e posições dos participantes no interior da cava.
O que mais chama a atenção nesse mito é o sentido do senso comum em oposição ao conhecimento da realidade iluminada pelo fogo da realidade. Pelo reverso, o termo “doxa”, em grego, corresponde ao atilamento sensível, desprovido de fundamentos demostráveis ou filtrados por críticas continuadas, longe de alicerces racionais previamente exercitados. “Doxa” e “episteme” pois se opõem, diferenciando o que é instintivo do teoricamente construído. No interior escuro, crenças e defesas inconsistentes ganham foros de verdade, sem deixar espaços para outras lógicas. E então tudo se justificaria por “pontos de vista”, “esta é minha opinião” ou “cada um tem a sua versão dos fatos”. A síntese desse clamor resulta na simplificação do debate que, afinal, abona o negacionismo e manda para o vazio a árdua laboração científica.
Caverna, de Platão, versa sobre o governo desejável a um estado ideal
O distanciamento da luz – ou da ciência – favorece expressões simplistas que partem de assunções essencialistas, imediatas, particularizadoras de situações questionadas no conjunto.
Anulando sequências universalizantes e integradas, o “lugar social” de quem vê sem conhecimento imputa disputas e propõem substituições de lugares. Ao fim, a busca obscurecida por definições próprias de cada encavernado, sem diálogos com a carga do passado, acaba por descosturar-se do conjunto e reivindicar outras irmandades, destituídas de diferenças. E tudo resta presentificado, defensivo como se não houvesse linhagens dinâmicas.
Pertenço ao grupo favorável à legítima integração cidadã, e com tantos reconheço, sem pestanejar, a lamentável exclusão histórica de indígenas e negros, mas em vez de assegurar que a solução está na garantia do “lugar de fala”, prefiro admitir algo mais abrangente e digno, o “direito de fala”. Sim, todos – todos sem distinção – devem ter direito para se explicar e assim se estabelecer. A alternativa de tal direito derivaria de políticas públicas capazes de garantir Educação de qualidade para qualquer um, sem exceção. É nesta perspectiva polifônica que reconheço a importância e legitimidade das cotas sócio raciais e do incentivo à participação dos desfavorecidos historicamente. É aí que aposto no “direito de fala” em vez de “lugares essencializados”.
Porque acredita-se em diálogo efetivo, democrático, instruído na diferença inegável, cultural e cientificamente garantido, advoga-se um plano de Educação pública amplíssimo, geral e irrestrito, um verdadeiro projeto de futuro. E nesse (possível?) programa seria garantido a participação com dosagem favorável aos menos protegidos historicamente. Direito, sem vitimização. Essa é a única forma de garantir correções ao essencialismo proposto por celebridades instantâneas e corrigir propostas causadoras de dicotomias absurdas, escondidas em ilusórios esquemas identitários. Que se discuta abertamente o “direito de fala”, com espaço inclusive e principalmente para quantos podem sair de dentro de cavernas escuras.