Pelé foi eleito o Rei do Futebol pela imprensa internacional
É estranho o conceito “cuidados paliativos”. Amedrontador também. Tem doído ouvir que o nosso Pelé está padecendo de tais zelos. Divagando sobre o tema, fico pensando na ironia do destino que parece ser inclemente: em plena Copa do Mundo o aclamado Rei do Futebol padecer dessa atenção especial. Seria crueldade ou benevolência do devir? De toda maneira, há alguma grandiosidade contida no aguardo fatal, pois estamos sendo preparados para uma despedida simbólica, daquelas que mesmo previstas causam surpresa e comoção.
O tempo que vivemos vai se despedindo de alguns feitos memoráveis consagradores de uma época que, ao findar, ganha sentido próprio. A geração que passa dos 80 anos tem registrado despedidas de figuras icônicas que marcaram a experiência coletiva de maneira sensível – só este ano, entre outros, nos deixaram: Elza Soares, Jô Soares, Milton Gonçalves, Arnaldo Jabor, Gal Costa e o “Tremendão”. Sim, é natural a abertura de novos tempos e uma das mais significativas formas de reconhecimento da sequência histórica reside na identificação de figuras que individualmente potencializaram o patrimônio geracional como um todo. E Pelé é um emblema claro de alguns lances promovidos pelo nosso tempo.
Com 3 das 5 taças Jules Rimet que ajudou conquistar
Não há como deixar de reverenciar o Rei. Ele foi o maior, o melhor, o mais aclamado. Como jogador desde menino, com 17 anos na Copa de 1958 na Suécia, nos ajudou a rasgar a pecha de “vira-latas”, como assinalou o então cronista esportivo Nelson Rodrigues. Seus gols encantaram o mundo e seu jeito aparentemente ingênuo, digno do estereótipo do “bom mineiro” o fez amado muito além da “arte dos pés”. Entre as alegrias que tive na vida foi vê-lo jogar no Santos. Inesquecível. Eu que sou corinthiano, aceitava a derrota de meu time se Pelé fizesse o dele como diferencial.
É fácil dizer que Pelé é um herói que nos faz encher o peito, mas é um orgulho temperado. Há algo mais na história de Pelé que precisa ser considerado, sua fragilidade. Sim, homem de tantas qualidades também apresentou defeitos que, afinal, o relevam como ser humano, dando toque especial à brilhante trajetória. Há passagens de sua vida que nem sempre são afiguradas, mas que promovem uma mirada de luz e sombras. O não reconhecimento de duas de suas filhas bastardas, Sandra Regina Machado e Flavia Kurtz, por exemplo.
Depois de muita luta, Sandra conseguiu provar sua filiação
O caso de Sandra é mais saliente, pois ganhou páginas de noticiários e processos judiciais. Fruto de relacionamento ocasional com a empregada doméstica Anízia Machado, a filha bastarda só soube do pai aos 26 anos depois de nascida. Frente à revelação tardia, tentou contatos que foram negados. Insistente, Sandra entrou na justiça e, obrigado, Pelé foi submetido ao exame de DNA que comprovou a paternidade. Sem nunca ter exigido direito pecuniário algum, a ex balconista apenas pediu para mudar o sobrenome que passou a ser Arantes do Nascimento (e depois de casada, Felinto do marido). Entrando na política, a moça foi eleita duas vezes vereadora pela cidade de Santos. Toda essa peripécia foi registrada no livro “A filha que o Rei não quis” (editora Roccia, 1998). Vítima de um câncer agressivo, Sandra Regina morreu aos 42 anos, em 2006 deixando dois filhos que recebem judicialmente ajuda do avô famoso.
Ontem e hoje
Mas o que significam essas falhas na história de alguém que conseguiu fazer o Brasil ser reconhecido a partir do próprio nome? A gravidade desta questão se recoloca agora, durante os tais cuidados paliativos. De maneira diferente, o reconhecimento da outra filha fora dos três casamentos oficiais, Flávia, foi bem mais simples. Filtrado pelo tempo, resta entender a atitude do Rei com a filha Sandra, mas não como exceção a ser esquecida. Não vale simplesmente dizer que ele pode tudo, que está acima do bem e do mal. Não mesmo. O que interessa é, sem desprezar sua majestade inconteste, é reconhecer sua condição humana, de alguém que erra e que tem dificuldades de aceitar a falha. Isso tem um outro lado, nosso, de admiradores do ídolo que, é sim alguém com defeitos e que mesmo sendo dono dos mais respeitados gols de toda história do futebol, tem em seu currículo também um gol contra. É a vida e sendo a vida de Pelé, é um pouco também nossa história. Viva o Rei Pelé.