José Datrino, o Profeta da Gentileza, pintou mais de 50 pilastras no Viaduto do Gasômetro com mensagens de amor, respeito, integração com a natureza e crítica ao dinheiro
Se alguém fizesse uma dessas perguntas tolas do tipo “o que mais quer para o ano que vem?”, sem titubear eu diria “um mundo mais gentil”. Sei que a questão é infundada, genérica, vã, mas serve para uma conversa fiada na linha das utopias. Como nunca, fomos abalados pelo ódio, pela divisão, pela rispidez no trato social. Naturalizou-se a agressão e cancelamento virou regra, às vezes até oportuna. Difícil dizer como chegamos até esse ponto, e mais complicado ainda se mostra indicar alguma saída. De regra, o silêncio tem sido a melhor solução, mas basta? Até quando o interdito funcionará como lenitivo. Sabe, parece que admitir o vazio de fala é como aquele analgésico que permite intervalo da dor, mas não soluciona o problema.
Diagnosticada a trama do convívio, resta pensar alternativas para a recuperação do bem-estar comum. Admitir que estamos em situação de conflito é saudável desde que tenhamos claro que isso não resolve o caso. Aceitado o pressuposto, temos que aplainar a estrada da compreensão mútua e pavimentar o caminho com gentilezas. Sim, gentileza educa e perfuma relações que precisam se ressignificar. Talvez seja conveniente lembrar que a generosidade tem história e se portou de maneira eficiente em outras situações. Em 1996, no Japão, frente a tantas dissidências no mundo que caminhava para o fim do século XX, promoveu-se um encontro e nele foi escolhido o dia 13 de novembro como “dia internacional da gentileza”.
Convém ressaltar que essa proposta não remetia a um pacto ocasional, de comportamento episódico, algo de um só dia, mas sim a uma proposta sócio-psicanalítica, fundamentada na luta contra o que Freud chamou em livro “Mal-estar da civilização”. Percebendo o mundo entreguerras como resultado de uma cultura de domínio e opressão, notando que isso afetava não só os sistemas que se opunham, mas também as relações pessoais que impeliam sujeitos a submissão, o texto publicado em 1929 apontava para o bloqueio capaz de justificar agressões em todos os níveis. Visando fortalecer os indivíduos, Freud propunha o reconhecimento dos eus individuais. O conjunto de críticos da contemporaneidade então indicava a gentileza como atitude social civilizada, capaz de permitir reposicionamentos dos outros.
Longe no tempo e no espaço, a procura de entendimento, no Brasil dos anos da contracultura, na década de 1960, ganhou contorno paralelo, muito menos sofisticado e mais popular e, então, o dia 29 de maio foi o escolhido como o nosso “dia a gentileza”, e isso se deveu a atuação de um tal de José Datrino, também como conhecido como “Profeta Gentileza”. Sua história, aliás, ilustra as razões da projeção dessa figura singular. Filho de família pobre e numerosa, migrante do interior paulista onde nascera em 1917, vivia em Niterói quando se deu o incêndio do Gran Circus Norte-americano, em 1961. Aquele que foi o mais consequente drama da história circense mundial, com 503 mortos, abalou profundamente a opinião pública. Sem esquecer da tragédia, seu Datrino resolveu fazer um jardim no local e daí, dizendo-se profeta, passou a vestir uma manta branca e divulgar frases de paz. A mais conhecida dela foi “gentileza gera gentileza”.
503 pessoas morreram no incêndio em Niterói no dia 17 de dezembro de 1961
Assumindo como missão, a figura estranha do profeta escolheu um local de passagem intensa, a entrada do Rio de Janeiro, e em 61 colunas de viadutos pintou frases relativas à harmonia e a concórdia. Na aparente simplicidade de seus dizeres, escondia-se uma postura filosófica que fazia eco na coletividade. Camisetas, placas, lembrancinhas com sua principal frase “gentileza gera gentileza” o consagraram a ponto de ser enredo de escola de samba. Um projeto urbanístico, no entanto, motivou o apagamento dos dizeres pintados com letras peculiares. A atitude da Prefeitura revoltou tanto que em protesto Marisa Monte compôs uma faixa intitulada “gentileza” em que canta “apagaram tudo/ pintaram tudo de cinza/ só ficou no muro tristeza e tinta fresca”.
Não diria que a experiência do Gentileza funcione como proposta coletiva. Não mesmo, mas serve como introdução a uma conversa necessária. Alguma coisa tem que ser feita em favor da melhoria da situação. Suponho que pequenos gestos colaborem e foi com esta intenção que eu repito “gentileza gera gentileza”.