Que a língua em uso em qualquer sociedade é organismo vivo todos sabem. Viva e esperta. Esperta e tinhosa. Não fosse viva, esperta e tinhosa repousaria morta como o Latim. Aliás, convém puxar a perna do Latim para lembrar que enquanto viva ostentava com solenidade e apuro distintivo três gêneros: masculino, feminino e neutro. Suas filhas diletas, principalmente as mais velhas e familiarmente próximas como o italiano, o francês e o espanhol e português, ao se firmarem como idiomas nacionais, eliminaram o neutro e assumiram o masculino como genérico plural. Autoritárias, todas se tornaram colonizadoras, submetendo as servas.
E foi assim que o “a” ficou para as mulheres e o “o” para os homens – na mesma lógica cabotina do “rosa” para elas e do “azul” para eles. Há muitas explicações para essas escolhas binárias. Desde a evocação bíblica que garante Adão como o primeiro ser vivo até os postulados políticos romanos que privilegiavam o homem como legislador. Por certo, seja qual for a via, a masculinizarão da língua, em particular das neolatinas, é fato inquestionável. Na mesma medida é esse o alvo principal para a busca de saídas: o combate ao machismo – leia-se, ao patriarcalismo e ao direito de equiparidade – como se a língua resolvesse a questão.
Desde o encontro de culturas possibilitado pela vinda dos portugueses ao Brasil, ocorrem ações subversivas desafiando a dominação a ortodoxia conquistadora. A alma inquieta que agita as falas jamais se contentou com verticalidades, e sempre se identificaram frestas incontidas na pretensão metropolitana. O português do Brasil é dos mais vibrantes e coloridos, tendo incorporado termos de variadas manifestações indígenas – a variedade de nossa toponímia é um tesouro – e incontáveis nuanças africanas que permitiu inclusive que Lélia Gonzales criasse o precioso neologismo “pretuguês”. E “macaxeira” e “cafuné” nos explicam abrasileirados.
A intelectual Lélia Gonzales criou o neologismo “pretuguês”
Diria sem medo de errar que nosso modo de falar é tão dinâmico e próprio que se justifica classificá-lo como “língua brasileira”. Polêmicas à parte, no entanto, esta discussão vale como pretexto para debates sobre um dos temas mais ferventes do momento, o gênero linguístico. Organizar qualquer trama sobre as recentes variações do português atual requer método e discernimento cultural. Nem tudo pode ser descartável por rebeldias ingênuas. Digamos que um pouco de comando também fará bem aos interessados em qualificar o entendimento do assunto.
Comecemos pelo básico que reza ser a língua portuguesa naturalmente neutra. A chamada “norma culta” se constitui em um conjunto de regras conservadoras que cuida da gramática e da aplicação elaborada do vernáculo. Muito mais rígida e exigente, a escrita por excelência dedica-se ao esmero e angula explicações gramaticais sem as quais as línguas não subsistem. Mais solta, a fala, muito mais livre e suscetível, é permeável aos acentos e entonações regionais. Isso a faz mais líquida e penetrante. Marcos Bagno tem insistido na abordagem da língua como fato político e isso nos convida a convocar as tramas do “politicamente correto”. Aliás, não é sem motivo que um dos principais objetos das eventuais incorporações remete ao tratamento sexista da língua.
Invocando políticas de inclusão social, em particular os movimentos LBGTQIA+ são os grandes artífices dessa onda. É claro que isso remete aos brados feministas que buscam equiparação de direitos, a começar pela fala. Sabe-se que qualquer sucesso depende da aceitação ampla que pode ou não acatar as propostas. Não só as correntes conservadoras rejeitam as mudanças, como há problemas técnicos nesse andamento. A transposição do oral para escrito, por exemplo, acaba por implicar um contraditório ponto na questão, posto que além das indecisões sobre qual o sema ideal (“e”, “@”, “X”), como ficariam os registros em braile? Valeria excluir os cegos para incluir os demais? E é chato demais falar “todos e todas”. Horrível camuflar tudo por “minha gente” ou “olá pessoal”.
Marcos Bagno insiste na abordagem da língua como fato político
Interessante notar que as tensões se acirram. De um lado, os ortodoxos que inclusive estão atentos aos vínculos com os demais grupos de fala lusófona e evitam modismos exagerados (ou inúteis). Reverso disso, autores como Gioni Caê promovem textos como “Manual para uso de linguagem neutra em Língua Portuguesa”. A soma dos argumentos de ambos os lados alarga extremos, mas há suspeitas que a tradição vença e as insistentes variações, por não se constituírem sequer unidade entre elas, tendam a se esvair como ocorreu com outras ondas na base do “lugar de fala” ou “empoderamento”.
De meu lado, mesmo atento ao ritmo das mudanças, respeitoso da luta por direitos humanos equiparados, devo confessar, humildemente, que não me sinto confortável com as variações e, em complemento, garanto que nunca saberia escolher entre o “Todes”, “Tod@s” ou “Todxs”. E você?