Juca Chaves com a esposa e suas duas filhas
Pois é, nunca imaginei que Juca Chaves morreria um dia. Jamais. Para mim ele era uma espécie de duende atemporal, um desses seres do contra que marcam a vida pela insistente irreverência, ainda que nem sempre pelo lado esperado – depois de detrator da ditadura civil-militar, ele foi defensor da Lava-jato, corrosivo opositor do PT.
Seu adeus se deu em Salvador, Bahia, dia 26 de março último e, confesso, a busca de entendimento dessa baianidade madura provocou articular alguma lógica no meio de um teorema vivencial de difícil combinação. Nascido em 1938, nomeado Jurandyr Czaczkes Chaves, teve desde pequeno a ambiguidade como paradoxo vivencial. Filho de judeus, o nome bem brasileiro, Jurandir, o colocava na linhagem dos “fora do lugar”, ou, como mais tarde disse Vinícius de Moraes, “menestrel maldito”. Com picardia, explicava que o apelido Juca fora decorrência da leitura da obra “Ubirajara” de José de Alencar que sua mãe fazia durante a gestação.
Os minguados obituários proclamadores de seu afastamento se referem a ele como “cantor e humorista”. De fato, foi intérprete e fez muita gente rir com suas chistosas críticas ao sistema, referindo-se a todos os presidentes. Isso, contudo, é muito pouco para explicar uma personalidade tão complexa. Com atuação vivaz durante a ditadura, padeceu exílio e precisou sair do país entre 1965 e 1985, repartindo seu tempo entre a Itália e Portugal – local em que também foi muito malvisto pelos governantes. De volta ao Brasil, ousou se candidatar, duas vezes, ao Senado da República, primeiro pela Bahia onde optou por morar desde 2006, e depois pelo Paraná.
Valendo-se do humor característico, produziu para a campanha baiana uma deliciosa vinheta onde deixava um recado “desta vez baiana gente, baiano de toda cor, o seu voto inteligente, com justiça e com amor, não será voto comprado, se tivermos no Senado, Juca Chaves senador”. Perdeu lá e perdeu no Paraná e até ironizou “perdendo aqui e perdendo ali, vou ganhando minha vida de perdedor”.
A originalidade de Juca Chaves lhe foi chave genuína. Nunca atuou em grupo e fez carreira solo baseada na combinação da pândega com fundamento político. Em vez do violão usual, correu o mundo com seu sofisticado alaúde que, aliás, manejava com habilidade de quem foi educado para solista clássico. Não deixa de ser sugestivo alguém com formação musical tão acurada produzir canções ácidas como “caixinha, obrigado”, “take me back to Piauí”, e principalmente o impagável “Brasil já vai a guerra” onde censurava o governo militar parodiando “Brasil já vai a guerra, comprou porta-aviões/ um viva pra Inglaterra de oitenta e dois bilhões/ mas que ladrões”. Sem clemência, em determinado ponto do andamento completava “enquanto uns idiotas aplaudem a medida/ e o povo sem comida, escuta tais lorotas dos patriotas”.
Seria enganoso supor que Juca Chaves apenas cantou protestos. Não. Com graça, por exemplo, fala do “nasal sensual” e esbanjou talento com a verve romântica, apaixonada, e neste sentido compôs também soberbas melodias como “Menina”, “Que saudade”, mas sobretudo a lindíssima canção “Cúmplice”, exaltando a amada Yara Sales com quem viveu um casamento único “Eu quero uma mulher que seja diferente/ de todas que eu já tive, de todas tão iguais/ que seja minha amiga, amante, confidente/ a cúmplice de tudo que eu fizer a mais/ no corpo tenha o Sol, no coração a Lua”. A vida amorosa de Juca Chaves foi completada depois de seu retorno em 1985 e se viu coroada pela adoção de duas filhas, meninas negras. Sobre essa escolha, “do coração”, vale a lembrança explicativa da profundidade de sua proposta vivencial. Na derradeira campanha para o senado, em 2010, entre outras metas como a recuperação da malha de trens e aposta na Educação pública, ele pretendia intensificar a campanha para “adoções sem preconceito” e testemunhava “tenho duas filhas, Maria Clara e Maria Morena, que são negras. O Brasil tem mais de 1 milhão de crianças para serem adotadas e as leis estão burocráticas, muito presas a gabinetes”.
Estamos órfãos de Juca Chaves e meditando sobre isto questiono o destino da crítica humorista brasileira. Elenco como principal legado do “menestrel maldito” a lição do combate mordaz e oportuno, como posicionamento claro ainda que nem sempre lógico. E fico me perguntando se, sem ele, teremos novas Chaves para abrir o cofre sempre trancado das provocações necessárias e convidativas para (re)posicionamentos inteligentes.