Pois é, me meti a pensar na relação Deus, ciência e religião. Foi um delírio, vertigem, arrebatamento. Pior, imagine abordar essas coisas em uma crônica limitada a 800 palavras. Pode? Até lembro-me das lições do colégio salesiano que definiam Deus como “um ser que não teve princípio e nem terá fim”. Recordei-me inclusive de uma aula de catecismo em que um padre, esforçadíssimo, usou uma imagem gravada a fogo em meu imaginário: para dizer da eternidade de Deus e de suas três características essenciais (onipresença, onisciência, onipotência), supunha uma bola de ferro do tamanho da Terra e que, de século em século, um passarinho vinha e a bicava para desgastá-la até o fim: Deus era maior. Esta formidável metáfora mais que me assustar fez-se tatuagem em meu inconsciente de aprendiz vida afora.
Fui aluno interno num colégio de padres rigorosos, educadores competentes. E tinha aula diária de religião. Católico compulsório, demorei para quebrar a ideia de um Deus supremo do qual não escapava um bater de asas de borboleta. E o “Todo poderoso” era representado por aquela figura monumental, austero velho de barbas brancas, vigilante que tudo controlava. Sem conseguir me livrar de vez desses preceitos, mais tarde fui jogado em um mundo simplificador que insistia em colocar na oposição ciência e religião, e para o ar evaporava Deus e sua alegórica corte. Contudo, como típico produto dos anos da contracultura, submetido a um materialismo da moda, e ia alternando momentos.
Sim, vivi como um daqueles camaleões que nos instantes de aflição rezam e suplicam, mas nas folgas duvidam e viram o rosto para a Trindade, anjos, santos e toda ladainha. E assim foram passadas décadas até chegar aos 80 anos e, agora, antevendo a proximidade fatal me pergunto “Meu Deus, que resposta tenho para lhe dar”. Um tanto preocupado, como sempre, fui aos livros. É claro que meu critério de escolha serve de indicador das respostas que queria: comecei por C. S Lewis, um de meus escritores favoritos desde a mocidade, dele passei a Giovani Papini e tropicalizei o conjunto com nosso Marcelo Gleiser.
Num arco rápido, diria que entendi as razões que me fidelizaram a Lewis. Sinceramente, desde “Crônicas de Nárnia” nunca deixei seus livros. Como uma sombra, sofisticado, Lewis me remete a noções espirituais sempre tão inquietantes e assim “Cartas de um diabo” se compôs na estreita lista de permanentes. Desta feita, porém, foi “Cristianismo puro e simples” que me dobrou. Papini foi indicação de amigo devoto de autores fiorentinos, e fiquei de tal forma sensibilizado com sua conversão que corri à autobiografia “Um homem acabado”, e dela ao fantástico “Juízo Final”. Buscando entendimento de nosso meio científico, cheguei a Marcelo Gleiser, e me deixei enredar pelas “21 ideias das Fronteiras do Pensamento para compreender o mundo atual”. Que texto!
Precisei, confesso, deste caminho para enfrentar o inventário proposto pela dupla Wellington Rodrigues e Amilcar Balardi que listaram questões ligadas às “Teses do conflito” e às “Teses da complexidade”. Apresentando uma tabela de questões, me vi convidado a filtrar dúvidas sobre os alguns itens: “quais os modos de relação entre ciência e religião? Pode um cientista opinar sobre controvérsias teológicas? Pode um teólogo ou religioso emitir opiniões sobre a metodologia do trabalho de investigação científica? Há espécies diferentes de crenças e de autoridades apropriadas a um campo e não a outro? Qual a relação apropriada entre crenças científicas e crenças religiosas? É apropriado rejeitar teorias científicas baseado em objeções religiosas? É apropriado rejeitar crenças religiosas baseado em teorias científicas? É possível comprovar crenças religiosas cientificamente?
E conclui que não é viável explicar Deus e nem a religião pela ciência, posto ser esta matéria concreta e o divinal tema abstrato. São ordens diferentes, ainda que nem sempre incompatíveis. Nem é apropriado explicar a fé, matéria transcendente, pela lógica científica calcada em empirismos. Compreendi também que há gozos insondáveis na crença e que eles não precisam dispensar o conhecimento elaborado, pelo reverso, podem se engrandecer. E me enterneço com o reverso do problema, ou seja, em explicar a ciência pela religião, com fim e aperfeiçoamento de desígnios permitidos. Muito mais que racionalidades, o convívio com o sobrenatural e as sondagens do além-mundo servem de senha para uma imortalidade desejável e confortante aos que se deixam crentes. E deste voo me ressuscito na alternativa de conter em uma crônica a imensidão do debate sobre dilemas exigentes de respostas urgentes. Entre Deus e ciência, pois, professo o milagre, quero os dois.