Vox populi vox dei, Renato Teixeira seria o modelo do Bandeirante e do Caiçara
Escrevinhadores de colunas longevas sempre têm algo a contar – a presente série caminha para os 19 anos, tendo inteirada cerca de 900 crônicas. Então, cá e lá, às vezes do nada surge um comentário, uma observação ou uma referência (elogiosa ou não). Pois bem, foi isto que aconteceu com a publicação em livro de um conjunto selecionado sobre minha vida na cidade que se me ofereceu como sua, Taubaté, SP. Havia mais motivos inscritos na aventura que celebrava meus 80 anos. Quis reunir familiares, amigos, ex-alunos e inventei uma festa. Por capricho não revelei que havia descoberto um problema de saúde e que havia uma cirurgia prevista. Festejei como quis e me esbaldei. Tudo e todos, de alguma maneira, estavam representados lá.
Pois bem, o livro foi lançado com o título “Oitenta vezes Taubaté, contendo um alinhavo de minha experiência atravessada fatos marcantes, matrizes de memórias acarinhadas como fundamentais para explicar quem sou, de onde vim e aonde quero chegar. Juro que foi emocionante detalhar os preparativos: o livro, a festa, o lançamento. Fiz um carnaval interno como quem pulava de alegria ainda que houvesse uma ameaça à frente. E como foi comovente autografar cada exemplar. Nossa!…
José Demétrio da Silva, nosso eterno Zé Demétrio
Como seria de se esperar, produto atrevido, o livro seguiu caminho, promoveu leitores, e cavou sua recepção independente de meus desejos. E foi assim que chegou às mãos de um leitor crítico que, educadamente inconformado com alguns ponteiros ou fatos retraçados por mim tempos atrás, armou uma amorosa cilada. Trata-se de pessoa que muito prezo e que em desdobramento de seu abraço amigo, convidou-me para uma conversa sobre Lobato, um de nossos elos. Fui.
Passada a fase de trocas intelectuais, de maneira matreira, fui levado a outro espaço onde na parede, entre tantas, reinava uma tela inquietante. Tratava-se de um desconcertante palhaço. Desconcertante porque com os olhos esbugalhados o personagem-tema carregavam uma criança morta. Minha primeira leitura levou à Pietá de Michelangelo, numa se versão pintada e modernista. Gelei.
Sou de uma geração que se acostumou a ver reproduções variadas de “palhaços tristes”, chorosos e desapontados, mas sempre solitários. Sem dúvida a profusão desses quadros convidava a consideração vulgar do tema e até ao desprezo. Aquele, porém, desviava a rota, propondo considerações diferenciadas. O autor, revelava o dono, era o conhecido escultor e poeta, José Demétrio da Silva. Gelei mais ao ouvir a história do quadro. Osni Lourença Cruz, o respeitado lobatólogo, havia pedido a Demétrio um quadro no qual a história a ser dramatizada remetia a um profissional circense que, cumprida a função, depois de divertir o distinto público, se recolheu para velar o filho morto horas antes. Afora o caráter melodramático, restava aquilatar a solução modernista das figuras. E a cada respiro meu, mais a obra me impactava.
Zé Demétrio, apaixonado pela escultura desde jovem
Não bastasse o enredo dentro do enredo – a história da visita e a trama da tela – outro componente fermentava a situação: Demétrio não foi exatamente pintor. Escultor de mão cheia, famoso por algumas obras como o mural da CAEMI em Botafogo no Rio de Janeiro, a figura de porte médio e cara agreste, era dono de temperamento forte e conhecido por defender seus pontos de vista. Eu amigo prezado dele havia criticado duramente uma escultura intitulada “O bandeirante” plantada a pedido do Rotary Club local, em 1970, no entroncamento das duas rodovias mais importantes da cidade. Meu lado historiador não suportou a agressão: como assim, um mestiço saudar a figura violenta de colonizadores que prendiam, escravizavam e matavam indígenas?! Como suportar isto?! Verti minha mágoa em artigo que feriu o artista. Zangas mútuas. Por um tempo deixamos de nos falar e nos evitamos.
Inconformado ele, inconformado eu, tivemos tudo sanado quando a mediação de Anderson Fabiano nos juntou. Doente meu pai, Fabiano propôs que Demétrio fizesse um entalhe com o rosto de papai. E nos abraçamos.
Confesso que a história teria morrido aí, não fosse o desafio lançado por Osni “professor acho que tem uma dívida e deve pedir desculpas”. Não sou do tipo durão e me conforto sabendo reconhecer meus erros. Levei a sério aquela trama toda e amadureci uma solução que se expressa na publicitação deste relato. E troco a desculpa por um abraço forte, reconhecido e digno de nossas trajetórias, minha e dele José Demétrio.