A vida – ou melhor, um tratamento de saúde – impôs repouso. Repouso, pausa difícil para alguém que nem teve tempo para se ver envelhecido. E não foi qualquer tratamento: diagnóstico revelado pelo olhar surpreso do médico, procedimento cirúrgico complicado pela burocracia do plano de saúde, hospital, robôs. Nossa, tanta coisa, todas estranhas às agendas cheias de urgências!… Talvez seja injusto reclamar da recuperação amparada por familiares, amigos íntimos, cuidadores. Uma voz filial me alertou: pense que o tratamento é momentâneo e que você se prepara para a superação. Ajudou muito ouvir tal coisa. O que, contudo, me foi de mais valia foram livros presenteados para passar o tempo incômodo pontuado por sondas, remédios (muito antibiótico), dificuldades corporais e minha eterna insônia.

Ganhei livros provocantes. Sim, caiu-me às mãos alguns textos do autor com quem mais dialogo: C. S. Lewis, aquele mesmo das “Crônicas de Nárnia”. E tinha que ser ele, crítico de um cristianismo do qual jamais abriu mão. E devorei sua versão da “Bíblia Sagrada”, extasiado com a força de seus argumentos tão fora das simplificações materialistas. Sinceramente, ainda sofro o impacto dessa travessia, pois aluno de colégio interno salesiano, sabia passagens soltas, sedutoras como a Arca de Noé, Daniel na cova dos leões ou Jonas engolido por uma baleia, mas tudo fragmentado. Rever a Bíblia redita por Lewis apontou amanheceres continuados, mudanças na cromática das leituras ocasionais.

CS Lewis, autor de A Anatomia de uma Dor

Devo revelar que se a obra de Lewis fosse colocada em questão, eu, infiel àquelas patéticas listas de “melhores livros”, elegeria as “Cartas do diabo a seu aprendiz” como um daqueles volumes que salvaria de qualquer eventual incêndio. O enredo arrebatador – que conta de um demo velho lecionando a um jovem que deveria seduzir um candidato ao inferno – equivale ao limite da sutileza inteligente, digna de quem foi professor de Literatura Medieval em Cambridge. E pelo viés biográfico do pródigo autor, completei meu afeto pelo pensador, dono de mais de 30 obras afinadas com a erudição capaz de enfrentar a objetividade dos incapazes de fé.

Tinha notícias de um pequeno escrito de Lewis “Anatomia de uma dor: um luto em observação”, mas as prioridades eleitas no lufa-lufa contornaram oportunidades que, agora, como milagre, se fizeram presente. Estranho este relógio do acaso que acertou a hora perfeita. Aprendi que o antes dedicado aluno de Oxford casou-se aos 32 anos, fato raro naquele então. Cumprindo promessa de cuidar da família de um amigo, Paddy Moore, que lutava na Primeira Guerra, apenas optou pelo casamento com uma jovem norte-americana com quem se correspondia há dois anos, Joy Davidman, depois de saldada a promessa. E a união durou minguados dois anos posto que sua esposa contraiu doença dolorida terminal. E é sobre isso que versa o livro.

 

“A anatomia de uma dor” não foi projeto planejado. Segundo o próprio autor, compôs-se de escritos esparsos, anotações feitas ao sabor de momentos, escritas aqui e ali, depois depuradas para trocar repetições por lógica temporal. E foi assim que as quatro peças se juntaram dando sentido ao diagnóstico da dor exposta à luz de interpretação cristã. Explorando os limites do luto, colocando-se como alguém atingido por dura fatalidade, Lewis questiona Deus, desafiado como um possível “Grande sádico universal”. A pauta que se apresenta é de uma epopeia pessoal de complexas reentrâncias nas quais se escondem os detalhes doloridos da ausência de compreensão razoável e aflora a ilógica da morte, transversa à potência da vida. De capítulo a capítulo, as fases do luto são desfibradas da indignação à aceitação de Deus e do projeto divino para cada qual. O caminho proposto é marcado pela possibilidade de um encontro final onde tudo se esclarece. Na trajetória, dá-se um ponto de virada, exatamente quando o choro perde a função de lamento e Lewis então assim se expressa “não é possível ver nada de maneira adequada enquanto os olhos estiverem cheios de lágrimas”. Como se decretasse que é preciso viver toda a tristeza para expurgá-la, fica dada a mensagem fatal: precisamos sofrer toda dor para depois compreender a vida.

Há mais reflexões contundentes no texto, situações que mexem com os sentimentos vulgarmente estabelecidos e entre tantos passos, com certeza, o culto à lembrança é alvo central. Sobre a ideia de que “ela viverá sempre na minha memória”, reconhece a fragilidade da evocação, completando “Viverá? Isso é exatamente o que ela não fará. Você pode muito bem pensar, a exemplo dos egípcios, que é possível conservar os mortos embalsamando-os. Será que nada nos vai convencer de que eles se foram?”. Sim, a consciência de que o vivido passou e que a vida será diferente depois da morte de alguém é a lição maior da “A Anatomia da dor”.