Nutricionista loira, cabelo impecável, cheirosíssima, olhos verdes…
Não basta adoecer; não basta ter que se submeter a tratamentos; não basta a parafernália de diagnósticos, internações, sondas, remédios, curativos e antibióticos. Hoje, para ser bom paciente é preciso mais, faz-se necessário um curso de atualização de todo processo de continuidade da cura. E nem basta fazer exercícios, mastigar 35 vezes, dormir oito horas, tomar dois litros de água. Além de cortar bebidas alcoólicas, refrigerantes, açúcar, doces, controlar o sal e abolir pimenta, é preciso vigiar o cocô ver se está consistente e… regularmente manter o médico informado.
E eis que não mais que de repente surge na vida um novo personagem, alguém perfeitamente exótico à própria experiência, um verdadeiro marcador da grudenta envelhecência: a nutricionista. No meu caso, nem sei dizer quem indicou, onde era seu posto de atendimento e como fui levado ao elegante consultório. Sequer tinha noção aproximada do que me aguardava e qual seria meu destino. Na rotina de comando de ações concatenadas por tantas demandas até deixei de controlar minhas próprias coisas – logo eu tão zeloso de autonomias, senhor de minha liberdade de solitário semi-feliz.
Pois é, passei a cumprir ordens e nem mais me questionava se deveria ir para frente, de lado ou parar. Aliás, descobri-me muito mais dócil do que supunha minha vã filosofia anterior. E foi assim que fui apresentado à tal nova personagem, uma linda profissional: loira, cabelo impecável, cheirosíssima, olhos verdes com contornos em linhas pretas abertas por generosos cílios, lábios em carmim acesso, magra na medida exata. Meu Deus, ela tem a idade de minha neta, pensei. Será que sabe o que deve fazer, me aturdi.
“Entendi melhor Kafka e a metamorfose da barata”
Logo pensei nas velhas receitas das vovós, aquelas que recomendavam canja de galinha, chá de hortelã ou camomila, dormir de meia e toca. Ah, devo dizer que fui acompanhado por um filho que, diga-se, virou ua espécie de guarda costa, sombra tão parecida como comigo eras corridas. Não que apenas a idade da menina fosse entrave, o tratamento também causava espécie, pois a moçoila não se dirigia diretamente a mim, falava com meu filho como se eu fosse mero pretexto para bizarra reunião. Aliás, acho que era mesmo pois me vi incapaz de entender o que falavam.
Fomos alertados a prestar informações gerais e depois de declinada a leitura de toda papelada chamada exames laboratoriais, a coisa se complicou muito. Me perdi num dialeto de termos técnicos valorados com pesos/gramas, medidas/horas, doses, combinações. Apenas compreendia termos usuais como “proteínas”, “sais minerais”, coisas simples. Senti-me fugido de alguma escola atualizada e engoli informações que implicavam “alimentos funcionais” e que “amido” não era só “amido” era também “amido modificado”, “resistente”, “aminoácidos” e não bastasse “aminoácidos essenciais”. Gente, fiquei arrebatado ao saber que havia as velhas vitaminas, agora se apresentavam como “vitaminas hidrossolúveis” e “lipossolúveis”. Mesmo sem entender nada, confesso, pela verbosidade e pela coreografia dos gestos, a moça me pareceu muito competente.
Entendi melhor Kafka e a metamorfose da barata. Foucault também fez sentido com a ordem das coisas. E ao vê-la apertar o botão da impressora e de lá sair os mandamentos do meu futuro foi como reeditar Moisés descendo do céu com as Tábuas da Lei. E era um chumaço de receitas detalhando o que podia e não podia mais. Protocolarmente agradecido, com os passos a serem seguidos comecei a meditar sobre as delícias das tradicionais massas de pizza trocadas por outras “harmonizadas” com soja, ovos e aveia. Desisti de pensar nas badaladas “whey protein” e sonhei com brigadeiros feitos de chocolate e leite condensado em vez de suplementos ou leite vegetal. Sabe, grão de bico virou luxo e reinaria em meio a alface rosa, americana, crespa, repolho roxo, rúcula. De bom mesmo só as sementes: chia, castanha de caju, do Pará, avelã. Amendoim não. Semente de abóbora sim, mas sem sal algum.
Pizza pode ser e não ser saudável
Parecia castigo e castigo bem aplicado por uma jovenzinha pretenciosa que sem me conhecer, sem saber de minha história, dos perrengues que passei, das lutas por causas perdidas, das lágrimas que verti vida afora, sem autoridade alguma para reconhecer meus esforços, agora, como se fosse dona do meu futuro, decretava como regular minha vida. Sabe o que é o pior, ainda tive que pagar pelo atendimento. Pode?