Devo sim ter um parafuso a menos, admito. Herdei algumas práticas que muitos chamam de toque: começo toda caminhada com o pé direito; não deixo bolsas com valores no chão; não uso roupa preta às sextas-feiras. Sei que muitos repetem isso, mas há certas práticas incomuns, distintas do repertório geral – algumas são manias leves, dessas que sequer chegam à categoria de bizarrices; deixe-me explicar melhor… Sempre tenho compromissos matinais que exigem pontualidade e nunca deixo de programar meu velho rádio relógio, mas quase nunca permito que ele cumpra sua obrigação: acordo antes, e com sorriso cínico, daqueles que cultivam dúvida e desafiam máquinas, sinto-me vingado.
Pois é, foi assim que nasceu esta crônica. Havia programado a hora, levantei-me antes, e parado no meio do escuro esperei o rádio que, por sua vez, com marota ironia, ressuscitava Ellis em lacrimejante récita da canção de Marcos e Paulo Sergio Valle “eu preciso aprender a ser só”. Tomei isso como sugestão e fui para o banheiro cantarolando “ah, seu pudesse fazer entender/ sem teu amor eu não posso viver/ que sem nós dois o que resta sou eu/ eu assim tão só” e, num repente, escovando os dentes, olhando para o espelho que me devolvia um eu estranho, destilei a letra questionando a vida: “eu preciso aprender a ser só?”. Liguei o chuveiro.
Sim, sou daqueles que filosofam no banho. Muito. Como vivo sozinho, vitimado pelo que meus documentos decretam, viúvo, carreei o mote dramático para se banhar comigo. Foi imediata a mistura dos pensamentos existenciais que se multiplicavam em espumas. E comecei conjugar loucuras, até que de repente tive que me explicar por que sendo careca uso de xampu; por que fecho a porta do banheiro se ninguém me espiará; por que me enxugo sob o chuveiro em vez de fora? E de quesito em quesito reformulei a questão capital “eu preciso aprender a ser só”? Será? Será mesmo, logo eu que tanto gosto de ficar sozinho e até festejo minha companhia? Mas Ellis não me liberava.
Fracote que sou, sem argumentos próprios, tomei carona em Heidegger com as “teses sobre a solidão”. O pessimista alemão assumiu aquele sentir como categoria filosófica inerente à condição humana, explicador dos danosos buracos existenciais. E com isso, em mim fermentou discussão sobre o abismo causado pela saudade, sinônimo de abandono absoluto. O intrigante pensador postulava a ausência como fundamento do enfado mórbido, grande responsável pelo desespero sem fim. Voltei ao espelho e no ritual da barba continuava conversando comigo. Contra-argumentei dizendo que os tempos mudaram, e assim pontifiquei uma hipótese que, pretensiosamente, imaginem, me permitiu desafiar o formidável Heidegger: os tempos mudaram e com ele a solidão… E ousei enfrentá-lo destronando o vazio existencial, agora trocado pelo estabelecimento de algo muito pior, a depressão. Como não aprendemos a ser só, fabricamos alternativas periclitantes.
Sim, a solidão não é mais aquela, mudou. Mediante a corrida do tempo, a velha dor do abandono se ilude com artifícios eletrônicos que aparentemente nos ocupam e postergam dores motivadas por mágoas e ressentimentos. Não se fica mais sozinho como antes, pois, as redes sociais, os podcasts, as séries, os joguinhos, tudo junto e misturado, não mais permite a ancestral solidão. Sabe, saio do sério ao ver pessoas ouvindo mensagens gravadas em modo acelerado (uma vez e meia e até duas vezes mais rápido). A soma disso decretou a necessidade do reaprendizado do tempo como medida da vida moderna. Desaprendemos, definitivamente, ser sós; sós até na busca desesperada de saídas. A saída da solidão é mais viável que a “deprimência”.
Antes mesmo de passar o creme pós-barba, perfumadíssimo aliás, lembrei-me que a Organização Mundial da Saúde já considera a depressão como o “mal do século XXI”. E combinemos, nossa centúria mal começou e o problema é tão alarmante que já o tratam como epidemia, abrangendo 10% da população mundial. Assim, vestido, pronto para sair, meio culpado, olhei novamente para o relógio que monotonamente cadenciava seus minutos. Pedi desculpas enternecido, e fiz um ato de contrição: vou me esforçar para respeitá-lo mais e me aplicar na lição de dar tempo ao tempo. E agradeci a canção que alertava “eu preciso aprender a ser só”.