Seleção brasileira jogou com uniforme preto em protesto contra o racismo
Para Marcel Diego Tonini
Em 2014, pouco antes da Copa do Mundo, a revista francesa SoFoot publicou um artigo brusco intitulado “Vive le Bordel Brésilien”, alardeando a preparação do evento como descontrole nacional. Depois do 7 x 1 perpetrado pela seleção alemã, o magazine regozijava “nous avons prévenu que cela échouerait”, como que celebrando o que agourou. O ano 2014 foi um divisor de águas e então nossos craques viraram vitrine.
O “esporte bretão”, de longínquo lastro branco e europeu, que até ali disfarçava sua gana hegemônica, não mais conteve despeitos e retomou a busca por requalificação valorizando ofensivas capazes de reposicionar princípios abalados pela popularização do esporte mundo afora. O preconceito como marca inerente à dominação metropolitana projetava diferenças identificadas, principalmente, nos jogadores negros, em particular brasileiros. E um darwinismo esportivo foi se globalizando opondo racialmente uns contra outros. Cá e lá, jogadores negros têm, cada vez mais, padecido ofensas, a maioria aproximando os atletas dos macacos. A prática é velha sim, mas estranhamente recondicionada.
Para felicidade geral dos Direitos Humanos, entidades do mundo todo têm se posicionado no combate, emblemando uma luta que merece nuanças antropológicas. E isto leva a considerar os sutis percursos da memória social. A discriminação dos negros no futebol deve, pois, ser vista sob a ótica da cultura de massa, reafirmada na simbologia símia. Antes, convém lembrar que o uso de mascotes animais é prática inerente a times mundo afora. Entre nós, por exemplo, só de aves temos: gralha, periquito, azulão, urubu. Isso afora: porcos, peixes, leão, burro. A lista é longa, mas nenhuma inclui o macaco. Por que será?…
Esporte bretão nasceu branco
Contrariamente, não faltam referência no vastíssimo repertório de ditos populares: “macacos me mordam”, “estar com a macaca”, “cada macaco no seu galho”, “macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Isto sem falar da popular “macaquice” ou “micagem” como imitação grotesca. Frente a isso, a questão que se apresenta sugere a questionar as razões desse uso como mote ofensivo, em particular em relação aos jogadores brasileiros, inclusive no Brasil, centralmente nos estados de colonização europeia. Indo mais longe, porém, pode-se definir um caminho bifurcado que remete a duas raízes explicativas, uma ligada ao reino animal e outra à cultura religiosa.
Ao se referir a um jogador negro como macaco, a intenção é desqualificar o atleta, colocando-o em nível inferior à condição humana. Em termos históricos, a categoria de escravizados perpetuou a classificação rebaixada na escala evolutiva. E isto tem lugar na memória histórica que subjugou a África como celeiro de seres degradados por regimes de trabalhos forçados. No caso do futebol, como se não houvesse cabimento para eles no campo dos brancos, um impulso perverso deixa vazar recalques submersos nos subterrâneos da imaginação coletiva de matriz europeia.
Há algo mais que precisa ser discutido: os preconceitos derivados de leituras bíblicas mal ajambradas. O caso da lendária maldição de Noé dirigida ao filho Caim – que ridicularizou o pai nu e embriagado – é resíduo de memória ancestral naturalizadora de preconceitos latentes. O castigo feito expulsão da família fez com que Caim arrastasse a punição transmitida aos seus descendentes, os negros.
Além da suposta linhagem evolucionista ou pretensamente bíblica, a transmissão oral sem filtros, tem servido de caminho para a hipotética inferioridade da condição negra e, ato contínuo, colá-la na figuração do macaco. Assim, a transmissão secular de algumas explicações vem produzindo efeitos de difíceis decifrações.
Os cartolas da Ponte Preta não conseguiram mudar macaca por gorila
A popularíssima expressão “macacos me mordam”, por exemplo, tem raiz na Guerra do Paraguai, quando, frente ao Imperador Dom Pedro II, o genro, Conde D’Eu, a cunhou, referindo-se aos soldados negros cedidos pelos fazendeiros de café. A expressão “estar com a macaca” sempre foi empregada como agitamento ridículo, palhaçada feita para divertir o outro, é referência amplamente aceita. Bastante ferino, o dizer “cada macaco no seu galho” delimita o lugar de cada um na escala social, definido pela figura do macaco – isso, diga-se, anula o senso do lugar democrático, comum a todos.
Mas há uma expressão que compromete esse repertório “macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Curiosamente, o dizer congolês, inverte o exclusivismo negativo atribuído aos macacos. Ao alertar os mais jovens sobre perigos, são os ancestrais símios que detém soluções. É exatamente este o ponto de reversão que interessa, pois, ao notar que são os velhos que ensinam os mais jovens, têm-se aí a grande lição: ainda que toda a sociedade branca se una, a lição de como lidar com o tema deve ser assumida por quem, por séculos, a padece no corpo. Só assim, mordendo a tradição estruturalmente preconceituosa, estando com a macaca revertida e sabendo que todos os galhos pertencem ao mesmo tronco, os negros ativistas convocam os demais a não meter a mão em cumbucas.