Sim, (in)fidelidades no plural, por favor. A fidelidade pura e simples convoca o singular, qualificando o pacto pessoal, amoroso, implícito na dialética do dois em um. Nem quero enquadrar a fidelidade que imagino legítima em regras contratuais, registradas, lotadas de clausulas e exigente de cartórios, carimbos e até firma reconhecida. Duvido muito de pactos que ordenam assinaturas, testemunhos e apadrinhamentos, ou seja, daqueles contratos que se firmam em cima do risco pendente de traições. Desprezo-os, mesmo sabendo de sua necessidade, pois, afinal, “o mundo é um moinho” como já avisava Cartola.
A fidelidade a que me refiro é filha da expressão anglo-saxônica “wireless fidelity” (fidelidade sem mediações), direta, apoiada no éter de vontades comungadas às vezes sem necessidade de palavras. E sinto-me derrotado ao admitir a vitória do consumismo capitalista que tanto desvirtuou o conceito a ponto de colar aquela expressão britânica aos aparelhos de som, conhecidos como “wi-fi”. E que dizer de práticas de mercado que tentam “fidelizar” clientes, como companhias aéreas, grandes magazines, bancos, tudo com bônus ou vantagens materiais. É por essas que, afora o amor romântico, candidato-me a ser o mais infiel dos humanos. E assumo minha vulnerabilidade que aliás me avaliza como ser mutante e até sem-vergonha. E como tal, uso como trilha sonora a profecia de Raul Seixas que me abona reconhecer uma “metamorfose ambulante”.
Infidelidade: questão moral ou jurídica?
Numa arqueologia pessoal identifico a origem disso tudo há algumas décadas quando ao entrar em um supermercado para comprar cerveja me vi perdido entre tantos rótulos. Sabe, depois de uma pequena guerra interna, optei por uma garrafa de vinho, escolha facilitada pela oferta do dia. D´outra feita entrei em uma livraria para presentear alguém com um livro e eram tantas as alternativas que me vi ancorado na sessão de autoajuda, pedindo socorro aos especialistas. Saí de mão vazia…
Imagine que me perguntaram qual o meu santo de devoção. Meu Deus, pensei na ladainha inteira e nos tantos “ora pro nobis” que tenho declinado. Perturbado com a densidade demográfica do céu, recortei alguns populares como Santo Antônio, São João, São Pedro – pensei em São Gonçalo que tocava viola em prostíbulo – e em São Jorge guerreiro e, olhe só, tive que exilar São Francisco que tanto amo, pois na lista nem coube São Judas, aquele das causas impossíveis, cancelado juntamente como São Longuinho que me socorre várias vezes ao dia. Além disto, percebi que estava sendo machista, pois não relacionei santa alguma, e ao tomar consciência disso me vi perdido na pluralidade de Nossas Senhoras: da Saúde, de Guadalupe, de Fátima, de Lourdes, da Conceição, das Dores, do Bom-parto, das Candeias, da Boa morte, do (Perpétuo) Socorro… e que dizer da Nossa de Aparecida que, sendo padroeira do Brasil inteiro, seria impatriótico deixá-la de fora…
Do céu para o inferno foi um pulo, ou melhor uma queda motivada pelo registro de 1449 figuras demoníacas. Ciente de meu limite cognitivo, restou nominar os mais conhecidos: Coisa-ruim, 7-Peles, Satanás, Tinhoso, Capeta, Satã, Dêmo, Demônio, Cão, Anjo-Mau, Príncipe-das-Trevas, Chifrudo, Leviatã, Belzebu, Lúcifer. Viu?! Então, como escolher apenas um para chamar de meu? E a galeria das flores? Imagine que só de rosas existem seis mil variações catalogadas, e há uma palheta de duas mil variações de cores. Músicas? Só para considerar as brasileiras, como escolher entre “A noite do meu bem”, “último desejo”, “Tico-tico no fubá”, “A flor e o espinho”, “Nervos de aço”, “Romaria”, “As rosas não falam” ou “Construção”, como? Sabe, sem pudor algum a cada questionamento escolho uma, sem me corar. E juro fidelidade como se não houvesse amanhã.
Quando perguntam qual minha cidade preferida, me perco em roteiros tentadores e girando uma roleta que para em uma qualquer até me sinto cidadão local, seja de Nova York ou na cearense Quixeramobim; da recôndita Baependi, no estado de Minas, ou na sofisticada Zermatt, na Suiça. Quando o papo versa sobre restaurantes a coisa pega mais ainda, porque dependendo do interlocutor sou capaz de citar o melhor do mundo, o Geranium, de Copenhagen, na Dinamarca, ao pastel do Mercado de Taubaté no estado de São Paulo.
Moral da história: sou consumista perdidamente infiel, burguês vulgar, peregrino do trânsito capitalista, canalha da fidelidade, louco por liquidações e brechós. Devo, contudo, dizer que com a mesma fleugma sou incapaz de trair um amor, uma amizade, um bem querer. Mas sou leal, sincero, herói capaz muita coisa pela crença na reciprocidade afetiva abstrata. (In)fidelidade(s) a parte, sou fiel a mim mesmo sendo burocraticamente (in)fiel.