O gerúndio deu passagem para o gerundismo, prática lamentável, usada ad nauseam pelos operadores de telemarketing, que insistem em se apropriar dos radicais “ando”, “endo” e “indo”
Ensaístas na década de 1930 propuseram supostos que alimentam, desde nossas raízes europeias, uma cordialidade e aceitação racial que juntas mascaram realidades que começam a mostrar esquinas e quebradas. E mecanismos variados servem de artifício para medir caminhos feitos de avanços e resistências que repontam nas expressões coloquiais. Observando tentativas de mudanças drásticas e estratégias para a acomodação de conflitos, João Alexandre Barbosa cunhou a expressão “tradição do impasse” pela qual reconhece que, frente às pressões de baixo para cima, nossas elites reinventam alternativas neutralizadoras que permitem traduzir para nossa realidade o que o escritor italiano Guiseppe Tomasi di Lampedusa estabeleceu no livro “O leopardo”, afirmando que “é preciso mudar para que tudo fique como está”.
O tempo continuado, pois, se apesenta como teorema explicativo de nossas dificuldades de transformações. É nesse contexto que o gerúndio ganha quilate, distanciando o linguajar brasileiro-colonial, do metropolitano-português. De saída, advoga-se a existência de uma “língua brasileira”, ou pelo menos de um “português brasileiro”. Curioso que, mesmo entre nós, há divisões que fundem em uma só moeda o gerúndio e o gerundismo. Mais refinado, o gerúndio é classudo; o gerundismo, coitado, “foi se popularizando”.
Partamos do nosso sotaque que se prende à entonação característica do linguajar lusitano do início do século XIX. Sim, o português de Portugal se dinamizou numa lógica imperial, abençoada por casticismos consagradores da norma culta. E, no Brasil, nosso linguajar ganhou ritmo próprio, afetado por tesouros indígenas e africanos, que, contudo, reproduziram mecanismos transferidos para poderes locais, obedecendo divisões de classe e adequações regionais. Parcela dos nossos, ainda que abrandada a rigidez da língua de Camões, continua a se banhar na chamada norma culta enquanto outro grupo, pobre e marginalizado, não incluído no círculo dos “educados”, mantém-se fabricando maneiras próprias de expressão.
É inevitável reconhecer, pelos marginalizados ou pela elite, que o falar brasileiro, se sustenta pautado pela ideia de processo de transição, de modificação. E isso explica o reinado do gerúndio como elemento capaz de nos situar historicamente. De tal forma o gerúndio se instalou que deu passagem para o gerundismo, prática lamentável, usada ad nauseam pelos inefáveis chamados de telemarketing, que insistem em se apropriar dos radicais “ando”, “endo” e “indo”. Quando juntado ao verbo estar, tais invenções convocam ganas dos puristas que não suportam coisas como “vou estar apresentando”… “oferecendo”… “indo”. Por um ou outro caminho, pela norma culta ou pelo dizer popular, o movimento do trânsito se impõe em condição diversa da matriz europeia que se vale do infinitivo, algo como “estou a apresentar”, a “oferecer”, “a ir”.
Lampedusa “é preciso mudar para que tudo fique como está”
O curioso é que alguns sinais das expressões colonizadoras sobrevivem e não são questionados. Dia desses listava alguns dizeres buscando suas origens e por elas entendi o impacto da origem do sistema monárquico em nossa memória cultural tão cheia de reis, rainhas, príncipes e princesas; seja em carnavais, festas religiosas, concursos de belezas. Não deixa de ser intrigante registrar expressões como “quem foi para Portugal perdeu o lugar” – que se liga ao apoio dado pelo povo a Dom Pedro II, quando o pai optou ir para o “Reino”; resistentes expressões como “vá tomar banho” – forma que os locais assumiram para se diferenciar dos portugueses, não chegados à essa prática.
E como afirmação distintiva, várias expressões ressurgem no gosto geral como “meia tigela” – ligada ao pagamento de serviços medidos pela quantidade de comida dada em troca de tarefas incompletas. Outra: “você sabe com quem está falando”, referindo-se ao nobres interpelados como cidadãos comuns, evocando seu posto nobre. Mais uma “dar com o pau” que se explica pela resistência de escravizados que preferiam morrer ao jugo senhorial, e então eram obrigados a engolir, por força de uma colher feita especialmente para isso. Já “panos quentes” eram trapos esquentados em água e usados para aliviar dores e febres. Curiosa é a história de “a cavalo dado não se olha os dentes” derivada de um cidadão português que tapeava pessoas com velhos pandarecos, pois os dentes dos cavalos novos nascem aos poucos.
E a soma de tantas expressões mostra a dificuldade de se pensar o Brasil que a um tempo consagra o gerúndio e mantém referências metropolitanas, muitas do século XIX. Uma hipótese sugere que o dilema entre avanço e memória do passado monárquico reside na consciência de nossa independência, momento em que o idioma se abrasileirou. Por uma ou por outra via, fica clara a dinâmica do nosso abrasileiramento que continua exercitando o gerúndio, mudando para continuar do mesmo jeitinho.