Para mestre Sebe e outros adeptos do kitsch
Kitsch, que tanto fascinou o escritor, foge do insólito, da ironia e do raciocínio, impondo imagens e emoções arcaicas
Milan Kundera, que morreu na terça, era fascinado pelo kitsch. Pilar de “A Insustentável Leveza do Ser”, ele é analisado longamente e a fundo nos ensaios de “A Arte do Romance” e “A Cortina”. Suas ruminações ajudam a entender a estética vigente no Brasil atual.
“A palavra kitsch nasce em Munique em meados do século 19 e designa o resíduo xaroposo do grande século romântico”, Kundera explica. Ela dá nome ao véu róseo que encobre a realidade, ao exibicionismo despudorado de emoções, ao lixo no qual se joga perfume.
O kitsch tem pontos de contato com o mau gosto, a vulgaridade e a breguice, mas vai longe. É a arte abastardada, a ditadura do coração comovido sobre as verdades da razão, o modo de ser da massificação, o “mal estético supremo”.
A fraude está em toda parte.
Está nos discos de Pavarotti, que retalha óperas para realçar dós de peito virtuosos. No piano meloso de Horowitz, que edulcora a música de raiz amarga. No Jorge Amado stalinista, que dá como automático um futuro róseo; e no mercantil, que apimenta a trama com calão e lascívia standard.
Está na alma e na pele da indústria cultural. Na miscigenação sorridente dos anúncios de margarina, carros, churrasqueiras e bancos. Nos cafés da manhã assépticos das novelas. Nas caras e bocas padronizadas dos filmes de Hollywood. Afável, o kitsch irradia um mundo sem conflitos.
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mário Sérgio Conti
A realidade é feita de engarrafamentos, radares e multas, bip bip de motoboys, poluição, receio de assaltos, exasperação. Todavia, a imagem que se vê é a de duas Kombi, uma aposentada há milênios e outra inexistente nas ruas, deslizando solitárias numa estrada vazia no arrebol. Puro kitsch.
“O kitsch é o ideal estético de todos os políticos”, escreve Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser”. Um senador americano fictício vê crianças correndo num gramado e, com ar sonhador, diz a uma moça que veio do lado cinzento da cortina de ferro que “é isso que chamo de felicidade”.
A frase, observa o narrador do romance, não é apenas uma expressão de alegria, mas também de condescendência com uma mulher oriunda de um país comunista onde, “o senador estava convencido, a grama não cresce e as crianças não correm”.
O kitsch foge do insólito, da ironia, do raciocínio. Impõe imagens e emoções arcaicas: a cantora rediviva que se reconcilia com a filha argentária; a família à mesa no despertar de um novo dia; a nostalgia de um passado idílico porque foi idealizado; a petizada peralta correndo à solta.
O kitsch precisa de um par de lágrimas para fazer efeito. Kundera esclarece: “A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo num gramado! A segunda diz: como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado!”.
Por isso crianças atraem políticos, que as pegam no colo e, enternecidos, sorriem para câmeras e celulares. Avisam assim que são afetuosos, cuidarão dos pequerruchos. Uns acreditam; outros não ligam.
Quanto às lágrimas, periga afogarem a política. Bolsonaro as deixa escorrer pela face ao posar de vítima dos nefandos comunistas —ou seja, dia sim, dia não. Lula soluça e pega o lenço ao falar de crianças pobres, da injustiça de sua prisão e da morte do neto.
Ai de ti se disseres que são lágrimas de crocodilos. Serás vaiado pelos fãs do atual e do ex-presidente, pelos apolíticos e apáticos. Todos apuparão tua frieza de esquerda caviar porque o chororô, simulado ou sincero, é essencial nos melodramas do kitsch. Buááá!
Milan Kundera em Praga em 1973
Kundera foi comunista, depois dissidente e, por fim, se exilou na França quando a União Soviética aplastou com tanques a Primavera de Praga, no ano de 1968. Na crítica ao kitsch político, inventou a “Grande Marcha”, a que “une as pessoas de esquerda de todos os tempos e tendências”.
Noção nascida de revoluções, a “Grande Marcha” caminha rumo “à fraternidade, à igualdade, à justiça, à felicidade”. Nela, os obstáculos “são necessários para que possa ser a grande marcha”. Daí vem o coro do porte de “não passarão!” e de “a luta continua!”.
A ideia de revolução implodiu, e com ela o objetivo de fraternidade, igualdade e felicidade vindas do coletivo. A “Grande Marcha” teve de ser substituída. No Brasil, entrou em vigor no lugar o “Grande Papo”.
Dia e noite, se ouve que é só conversar, e trocar seis por meia dúzia, para que devagar se vá ao longe. Com o “Grande Papo”, os maiorais cederão seus jatinhos, apês em Miami, iates e limosines. Na boa, juntos chegaremos lá — daqui a mil anos. Basta que a ralé acredite no novo kitsch.