Para Suely e Leandro Moreira
“Faça da Educação um Prazer”
Sou daqueles que saúdam os estudos de gênero por identificar neles a essência da participação social. Principalmente quando os cruzamentos de interesses se buscam como forma de entendimento da espécie humana, vejo luzes e assim prestígio mulheres se destacando em favor de posicionamentos representativos e por isto democráticos. A pauta é extensa e os temas se multiplicam realçando a opacidade histórica sempre masculinizante. Além dos assuntos relativos aos apagamentos silenciadores de minorias sociológicas, valorizo sobremaneira mulheres estudando o comportamento masculino na mesma lógica de homens procurando compreensão em pesquisas sobre mulheres. E viva a diferença. É claro que coloco limites tanto nos tais “lugares de fala” quanto nos “lugares de falo”, e em uma ou outra tendência denuncio obsessões que transpiram tribalismos irremediáveis, coisas mesquinhas, atitudes geradoras de polos.
Toda essa argumentação me serve de base para abordar um lance prosaico, relativo a uma das personagens que mais me fascinam na história do Brasil: Bertha Lutz. Cientista renomada, filha de autoridade no campo da saúde nacional, Bertha ficou conhecida pelo brilho pessoal, principalmente por sua atuação política, sendo distinguida deputada federal nos anos de 1930. Sem se dizer feminista, liderou um dos mais bem sucedidos processos de cidadania do Brasil: a luta pelo voto feminino. Com base em um lapso da Constituição Republicana de 1891, notou que havia espaço para requalificar a mulher como cidadã com plenos direitos, inclusive de votar em paridade com os homens. Com esse mote, mobilizou vasta leva de mulheres e demais seguidores que, por fim, conseguiram colocá-las como eleitoras e candidatas regulares. Aliás, a luta das chamadas sufragistas é exemplar e mereceria uma revisão na pauta dos estudos sobre as mulheres e sobre as transformações progressistas de nossa história.
No caso específico da sra. Lutz, contudo, há alguns destaques significativos que poucos sabem e que podem iluminar a personalidade que não atuou apenas na seara política. Longe de ser recatada e do lar, Bertha tinha comportamentos nada condizentes com a moral e os bons costumes daquele tempo sisudo e rabugento. Segundo noticia o histórico do Consulado Italiano do Rio de Janeiro, com base em publicação do jornal “O Imparcial” de 28 de janeiro de 1937, no mesmo prédio onde ainda funciona a representação da Itália no começo da Rua Antônio Carlos, no Centro da antiga capital federal, a então “Casa d’Italia” oferecia cursos de língua, cultura e arte italianas. No prédio em frente, no Edifício Santa Branca, morava a proeminente personagem que, sem pudor algum, desfilava nua, com as janelas bem abertas. A atração fazia a alegria de jovens alunos e era tamanho o sucesso que inúmeras vezes a direção da escola tinha que alertar os jovens dos riscos de penalidades e até de reprovações. E pouco adiantava. O problema se complicou a tal ponto que a “senhora de idade madura”, como dizia o jornal, foi denunciada várias vezes para a polícia. Acontece que ao mesmo tempo ela era deputada, eleita pelo voto popular, e, pois, gozava de “imunidade parlamentar”. A provocação da parlamente só crescia até que chegou um dia em que os cuidados com o corte de unhas do pé tanto entretiveram os pupilos que foi necessário chamar a atenção pelo jornal que, para regozijo dos rapazes, pouco ou nada conseguiu fazer, posto que qualquer sanção deveria antes passar pela mesa diretora da Câmara dos Deputados.
Bertha Lutz jovem
Certamente, a repetida mostra pública da nudez da distinta dama revelava um posicionamento político mais amplo em que, além de contestar a moral pudica do tempo, implicava também discutir o papel da polícia, incapaz de solucionar problemas como aquele. Sim, houve solução do problema pois sabe-se que depois de muitas idas e vindas à Delegacia “finalmente, com muita habilidade e serenidade, os policiais conseguiram convencê-la a interromper a mostra de naturalismo, e os professores puderam retomar suas aulas”. O que não fica claro, mas merece consideração, é o velado sentimento antifascista que dominava o progressismo da época. Filha de judeus que assistiam assustados o crescimento do fascismo, aquela nudez ostensiva não seria um ato político? Façam suas apostas…
Por certo o relato deste caso poderia passar como pitoresco. Reivindica-se, contudo, algo mais. Colocada na biografia de uma personagem como Bertha Lutz, dada a sonoridade de sua presença na cena nacional, indaga-se da provocação contida no ato exibicionista. Certamente os biógrafos dela haveriam de explorar o caso como atestado de uma percepção de moral que precisava ser agredida e também de uma postura política contra instituições dependente do humor fascista em ascensão. O uso do corpo de parlamentar protegida pela lei, certamente, expressava a vontade transgressora daquela mulher única.