Pois é, os tempos mudaram. E mudaram muito. Penso no Natal, nos rituais de passagens, em eras quando o consumismo ainda não tinha o apetite de hoje. E minha lembrança voa para momentos em que o Bom Velhinho era mais discreto, menos pródigo. E como cuidávamos dos pedidos de presentes que, afinal, eram resultados de negociações ou prestação de contas. Como eu, muitos garotos que viraram avós escreveram para ele sua primeira cartinha com cândidas solicitações. E eram peças retraçadas à mão, em papeis especiais, sempre com alguns toques de realidade como envelopes e selos – os mais crédulos iam até os correios que dispunham caixas especiais. Simulacros milagrosos esses, multiplicadores de expectativas, tradutores de sonhos materializados em acertos do tipo “Papai Noel, fui bom aluno, passei de ano, não desobedeci a meus pais, falei poucos palavrões, por isto te peço…” Ah, me emociono só por lembrar.
Eu devia ter uns 10 anos e a professora no curso primário, Dona Marieta, entusiasmava a criançada propondo uma “redação caprichada”. Como esmerei! Para os colegas era uma atividade; para mim um ritual sofisticado, iniciação alucinadora, tapete mágico. Fiz rascunho, escolhi as palavras como coletor de pérolas, desenhei figurinhas nos cantos e com minha caligrafia engalanada pedi um carrinho de corda. Ganhei. Tão lindo que até hoje trafega em meu imaginário sempre desobediente de realidades.
Quem mudou?
Devo dizer que do nada me veio o “Soneto de Natal” – aquele que Machado de Assis escreveu em 1901 indagando “mudaria o Natal ou mudei eu?”. E me desafiei perguntar quais novidades meu menino-antigo consideraria. E não tive como fugir da revisão das questões de gênero, da necessidade de respeitar novos tratamentos entre o masculino e o feminino. A apologia ao Papai Noel me fez pensar no apagamento das mulheres no compósito que mexe com tantas emoções universais. E me perturbei com uma pergunta obtusa: e a Mamãe Noel? Teria ela significado? Era apenas companheira? E mais cruel, teria ficado em casa, sozinha, na noite dadivosa? Mais: teria preparado uma ceia, para quem? Por favor, não vejam nisso adesão pura e simples ao polêmico “politicamente correto”. Para mim é questão de cidadania, de direitos, de requalificação dos papeis sociais que mexem inclusive com o tratamento familiar, pois se existe um Papai Noel, uma Mamãe é cabível. Nem vou adiantar a questão de gênero que respeita dois papais ou duas mamães. Foi exatamente a partir do simplismo da lógica binária que revi posições e me atrevi a uma breve cartinha:
“Querida Mamãe Noel,
Ola! Espero que estas mal traçadas linhas a encontre com saúde e disposta a enfrentar um mundo dividido e descontrolado. Como pode ver, eu me modernizei e como acho que toda mudança deve começar em casa, ousei invadir sua privacidade e começo pela troca de lugares e me permito, comprometendo o papel dominante do Papai Noel, promove-la titular da festa. Tomara que ele não fique zangado, não se sinta usurpado de poderes; tomara também que sua liderança não a prejudique e sobrecarregue pois, prudente, temo manobras masculinas que não se cansam de admitir transformações que, afinal, facilitam mesmo nossas vidas. Sejamos, porém, otimistas e para tanto apresento alguns fundamentos.
Apoio meus motivos na saturação da estrutura patriarcal exaurida e cumpridora de função que fazia sentido no fustigado passado. Agora é a vez das mulheres. Aliás, com este suposto cancelo seu título de “rainha do lar”. Dona do pedaço, sugiro pegar as rédeas das renas com auxílio de novo GPS, posto que a Terra voltou a ser redonda e girar da esquerda para a direita. Ademais, em tempos de tantos programas sobre culinária, seria bom o Papai Noel assumir a cozinha e os afazeres domésticos: arrumar cama, passar roupa, acumular algumas tarefas “menores”. E os filhos também… E a senhora merece ser festejada.
Questões contemporâneas
Sabe, vejo virtudes na proposta de alterações de papeis familiares. Acredito piamente que, modificando a condução todo conjunto será positivamente afetado, todos terão que se mexer. E Mamãe Noel, é verdade que o mundo inteiro deveria se preocupar com a orientação para um futuro melhor, mais igualitário e por isso menos machista, mas é a mulher que tem mais argumentos para o bom combate e, como não reconhecer, o Natal é bom tempo para isso. Seu novo posto é, neste sentido, revolucionário. Aproveito para lembrar que pelo menos na lei a paridade de salários já foi regulada, cabe agora fazer pressão para que a letra ganhe forma de direito.
É assim, Mamãe Noel, que em vez de pedir à moda antiga rogo por condições que a coloquem no lugar devido, mas não pense em inocência minha, não. Todos seremos presenteados se assumir o lugar no qual os homens, na melhor das hipóteses, fizeram um rascunho do que poderemos vir a ser.
Deixo meu abraço e meu beijo mais que carinhoso, cheio de esperanças”