“Surge a manhã de um novo ano/ As coisas estão limpas, ordenadas/ O corpo gasto renova-se em espuma/ Todos os sentidos alerta funcionam/ A boca está comendo vida/ A boca está entupida de vida/ A vida escorre da boca/lambuza as mãos, a calçada/ A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia” (Drummond)
Chega um tempo na vida em que as felicitações da passagem de um ano para outro cansam. Tantos lugares comuns, repetições baratas, insistências em jingles desbotados, tudo junto convida à indiferença. Felizmente existem antídotos. Na sanha de novidades, resolvi rememorar alguns poetas e eis que cintilou um rastro de estrelas. Lembrei-me logo de Cecília Meireles no “Cântico XIII” dizendo “Renova-te/ Renasce em ti mesmo/ Multiplica os teus olhos, para verem mais/ Multiplica-se os teus braços para semeares tudo/ Destrói os olhos que tiverem visto/ Cria outros, para as visões novas/ Destrói os braços que tiverem semeado/Para se esquecerem de colher/ Sê sempre o mesmo/ Sempre outro/ Mas sempre alto/ Sempre longe/E dentro de tudo”.
Cecilia Meireles
Animado me foi fácil recobrar Mario Quintana no verso “Ano Novo” alardeando “Lá bem no alto do décimo segundo andar do ano/ Vive uma louca chamada Esperança/ E ela pensa que quando todas buzinas/ Todos os tambores/ Todos os reco-recos tocarem:– Ó delicioso vôo!/ Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada – outra vez criança/ E em torno dela indagará o povo:– Como é o teu nome meninazinha dos olhos verdes?/ E ela lhes dirá/ (É preciso dizer-lhes tudo de novo)/ Ela lhes dirá bem alto, para que não se esqueçam:– O meu nome é ES–PE–RAN–ÇA”.
Diria sem medo de errar que há um texto que funciona como farol dessas reflexões: o divulgado “Cortar o tempo” com Drummond rejubilando “Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias/ a que se deu o nome de ano/ foi um indivíduo genial/Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão/ Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos/ Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para diante vai ser diferente”. Ironicamente, contudo, este texto provocou outras buscas e uma estranha contramão fez trafegar orientações reversas. Como se não houvesse louvado antes, Drummond salgou o próprio otimismo no verso “O ano passado” afirmando “Ficção de que começa alguma coisa!/ Nada começa: tudo continua/ Na fluida e incerta essência ..misteriosa ‘a vida, flui em sombra a água nua/ Curvas do rio escondem só o movimento/ O mesmo rio flui onde se vê/ Começar só começa em pensamento…” e duro concluía “E será sempre assim daqui por diante/ Não consigo evacuar o ano passado”.
“O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA” (Mário Quintana)
“Evacuar o ano passado”. Doeu… e doeu mais ainda lendo dele, no “Passagem do Ano”, o lamento “Passagem/ O último dia do ano/ não é o último dia do tempo/ Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida/ Beijarás bocas, rasgarás papéis/ farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral/que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor os irreparáveis uivos do lobo, na solidão” e arrastado concluía “Recebe com simplicidade este presente do acaso/ Mereceste viver mais um ano/ Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos/ Teu pai morreu, teu avô também/ Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte/ mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo/ e de copo na mão esperas amanhecer”.
O movimento pendular entre a euforia de novo começo e a maledicência da continuidade exigiu mais buscas e insisti no mesmo Drummond, na “Receita de Ano Novo” onde pontifica “Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz/ Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido)/ para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras… você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita/ não precisa expedir nem receber mensagens… Não precisa fazer lista de boas intenções/ para arquivá-las na gaveta… Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome/ você, meu caro, tem de merecê-lo/ tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil/ mas tente, experimente, consciente/ É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.
Drummond eternizado nas praias da cidade que amava
Virei páginas e páginas do vasto legado poético de Drummond e achei em “Passagem do Ano” agravante “O recurso de se embriagar/ O recurso da dança e do grito/ o recurso da bola colorida/ o recurso de Kant e da poesia/todos eles… e nenhum resolve/ Surge a manhã de um novo ano/ As coisas estão limpas, ordenadas/ O corpo gasto renova-se em espuma/ Todos os sentidos alerta funcionam/ A boca está comendo vida/ A boca está entupida de vida/ A vida escorre da boca/lambuza as mãos, a calçada/ A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”.
Pronto está proposto o jogo da repartição do calendário: saber o deve – ou não – continuar. Afora a linguagem festiva, o próprio Drummond indicou algo que pode dar sentido à passagem de um ano para outro, no verso “Memória” ele escreveu “as coisas lindas, muito é mais que lindas estas ficarão”. O ensejo do ano novo, pois, é época oportuna para decisões sobre o que fica e o que deve obedecer a magia da mudança. Tudo lindamente resolvido por nós mesmos.