Entrudos eram manifestação grosseira onde desde a colônia onde populares jogavam água e detritos uns nos outro
Mal Papai Noel virou as costas e o Rei Momo está solto com suas rainhas, princesas, baterias e escolas de samba. É demais para qualquer um. Demais sim, mas temos que correr atrás dos recados dados pelas ruas, salões, avenidas. Queiramos ou não, os esparramados três dias do festejo potencializam significados que dizem respeito à nossa história e identidade, aos nossos lugares sociais. É preciso perder a inocência e ver no tríduo a essência política fantasiada de fanfarrice.
Tudo muda, é verdade e aos poucos o carnaval brasileiro vai se ajeitando na busca de uma democracia utópica e inerente à condição humana. Sim, o carnaval é festa do povo, do povo e do “não povo”, ou seja, daqueles que saem às ruas e o usufruem a seu jeito, ou daqueles que enviesam olhares e preferem ficar em casa. Novamente fala-se da democracia que abriga o direito de gozar a oportunidade segundo qualquer querência. Os mistérios da memória coletiva são insondáveis, ainda que de seu segredo sugira a idealizada igualdade social. E retoma-se a discussão lúdica sobre “brincar”, “pular”, “desfilar” ou “repousar”. Com idas e vinda, com contradições gritantes, o movimento carnavalesco aponta para uma apoteose que, não alcançada, recicla-se a partir da quarta-feira de cinzas. E àqueles preocupados com o entendimento da cultura, balanços se fazem diagnosticando as variações celebrativas da festa.
Nos blocos de rua, a pândega tem lugar de honra
“Brinca-se” carnaval na tradição dos blocos de rua, daquele aglomerado de gente que serpenteia pelos espaços públicos com um pequeníssimo comando. É quando a pândega ganha lugar de honra e se mostra com fantasias improvisadas, ironia e deboche. Quase sempre, nessas situações velhos sambas se repetem e bandas despreocupadas com precisões musicais permitem soltar fantasmas reprimidos no cotidiano. A irreverência domina mensagens que expressam o suposto da inversão do cotidiano. É velha a raiz dessa forma de brincar, deriva dos entrudos, manifestação grosseira onde desde a colônia, populares jogavam água e detritos uns nos outros. Há uma data divisória dessa expressão: o ano de 1840 quando decretos tentaram acabar com a algazarra. Em 1946, com outras estratégias, logo em seguida o grupo de “Zé Pereira” reinventou a manifestação que aos poucos foi ganhando consistência sem perder o teor anárquico. Já no século XX, as marchinhas funcionavam como trilhas dessas manifestações libertárias.
“Pula-se” carnaval nos espaços fechados, nos clubes ou em áreas cercadas. A entrada quase sempre depende de ingressos e há regras atentas a roupas e horários. O verbo pular então ganha diferencial capaz de promover confraternização de pares, pessoas que se afilam ou têm grana para pagar. Há quem queira brincar carnaval nos espaços feitos para pular, mas os limites impostos tolhem liberdades, e muitas vezes infligem temas para fantasias, promovem concursos. Como a expressão carnavalesca brasileira tem raízes múltiplas, é bem possível que haja influência da tradição italiana do século XVII com as “commedia dell’arte” dos teatros venezianos, fiorentinos ou romanos, mas não é desprezível considerar que a organização de classes – e no Brasil a reação ao entrudo – forçou reuniões em salões, clubes e boates. Sem definição rítmica própria, tais bailes emprestam marchinhas populares e sambas como trilhas.
Escolas de samba: um complexo processo de negociação cultural
Na organização hierárquica das sociedades de classes, nos bairros periféricos do Rio, antiga capital federal, desde 1923 algumas sociedades carnavalescas começavam a se expressar inspirada em modelos adaptados de tradições difusas. Tendo, contudo, o samba como pretexto, tais agremiações logo foram reconhecidas como expressão autêntica do ambiente carioca até que, em 1932, sob o patrocínio de jornalistas organizou-se o primeiro desfile. Um complexo processo de negociação cultural se processou com a proposta de integrar o centro – e nele as classes privilegiadas – com o mundo suburbano reconhecido com favelas. Um rígido sistema de regras ditava o comportamento das escolas que passaram a ser reguladas pelo estado, atento a usar o evento como forma de propaganda turística. Um dos quesitos para a qualificação das escolas de samba era o desenvolvimento de sambas de enredo, sempre pautando a história do Brasil. A oficialização das agremiações carnavalescas impôs o termo “desfile” em decorrência da definição das competições das escolas de samba.
É evidente que a diversificação de formas de vivência carnavalesca no Brasil demandou escolhas locais. Moraes Moreira cantava “80 carnavais”, mas uma das sutilezas mais exuberante da festa é a resistência do modelo carioca, e com base nessa premissa questiona-se o lugar de cada pessoa na escala social carnavalesca. Inclusive o direito de “não gostar da festa”, mas o que não se abdica é o reconhecimento de forças libertárias que se fantasiam de alienação. De alienado o carnaval não tem nada. Alienado é quem não vê política na evolução desta festa tão nossa.