“Nada como um dia depois do outro”. Cada um de nós tem histórias para contar implicado a sucessão do tempo; ah “tempo rei” diria Gil… Recobrei aquele dito ao reconsiderar a trajetória do compositor e intérprete Odair José, hoje com 75 anos de idade, agora adjetivado como “cult”. Com autoridade de quem soube esperar o tempo cumprir sua rota, o aparente introvertido, dono de mais de 80 milhões de cópias distribuídas em 58 álbuns, um dia foi chamado de “Terror das empregadas” e “Bob Dylan da Central do Brasil”.

Preconceitos à parte, o personagem, conta que muito jovem deixou Goiânia porque “queria mostrar minha música”, referindo-se à sua produção exótica ao férvido ambiente que via nascer a Jovem Guarda, consagrava “Rei Roberto Carlos” e a Tropicália, entre outros modismos justificados no contexto da ditadura cívico-militar. Eram anos de fechamento cultural e a classe média, alijada da política, precisava achar saídas em meio ao confuso cenário das manifestações artísticas que trançavam catarse coletiva e resistência. O cinema, a televisão, o teatro, a poesia, os festivais de música e as artes plásticas, dimensionavam anseios dos jovens pressionados pela censura, exílio, tortura, mortes e desaparecimentos

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Sob a ilusão do “milagre econômico”, o conceito de “popular” padecia rebaixamentos sucessivos, relegado a planos inferiores. O sertanejo, o bolero, o samba canção, entre outras manifestações, eram aproximados da cafonice, prova mau gosto e sinônimo de povão, em contraste com uma atualização excludente, filtrada por influências importadas. Não que inexistissem variações, mas elas mesmas eram enviesadas por escolhas coerentes com o avanço modernizador estrangeirado. Avesso disso, porém, em silêncio recolhido, o legitimamente popular se manifestava consagrando sucessos em segmentos subalternizados. E foi num desses subterrâneos que a figura de Odair José se fez o maior.

E havia uma onda de artistas menorizados pelo afã classista que causava risinhos debochados em tipos como Amado Batista, Reginaldo Rossi, Waldick Soriano, Joelma, Cauby, Ângela Maria, Hebe Camargo. Considerado o mais brega dos bregas Odair José repontava com gravações que se iniciaram em 1969 com “minhas coisas” que, curiosamente, meio por acaso, entrou num álbum com as 14 mais do ano, puxada por Roberto Carlos e, diga-se, esse foi seu primeiro sucesso. Depois, em 1972 Odair José gravou um álbum intitulado “Assim sou eu” onde entre outras canções controvertidas como “Esta noite você vai ser minha”; “Pense pelo menos em nossos filhos”; “Cristo quem é você?”, figurava o perturbador “Eu vou tirar você deste lugar”. Logicamente, o recorte da censura não tardou, fato que, contudo, não diminuiu o ímpeto do autor que no ano seguinte ousou com “Uma vida só”, mais conhecida como “Pare de tomar a pílula”.

Censurados: Caetano convidou Odair José para participar de um show

Havia dois critérios orientadores da ação opressora: o viés político e a pauta de costumes. Compositores como Rita Lee, Chico Buarque, Caetano e Gil, foram alguns atingidos em cheio, mas na lógica da constrangedora opressão moral, Odair José foi o mais visado. Entre seus sucessos proscritos temos algumas preciosidades como “Seios”; “Vai, mas vai mesmo”; “Procurando alguém”; “Cadeira de rodas”; “A Noite Mais Linda do Mundo” e, claro, as duas mais “prestigiadas” foram “Eu vou tirar você deste lugar” e “Pare de tomar a pílula”.

A primeira, por referir-se ao ambiente da prostituição tinha, como agora, justificativa na família; a segunda colidia com a campanha do governo que, exatamente naquele momento, pretendia nacionalizar o uso do anticoncepcional. Sobre a recepção desses dois sucessos, muito poderia ser dito, mas há um detalhe que merece luz: o fato de Caetano Veloso ter convidado Odair José para se apresentar no Anhembi em São Paulo, num show que pretendia ser o mais importante até então, contando com presenças como Gal, Bethânia, Elis, Chico Vinícius entre outros maiorais. E houve encenação e tudo, pois o anfitrião deixou para o fim o dueto que faria com o convidado surpresa… Conta-se que ao anunciar o público não economizou vaias e que aquela foi a mais retumbante rejeição de toda a história da música popular brasileira. Mediante a reação do público, Caetano insistente cantou com Odair “Eu vou tirar você desse lugar” e, irritado, por fim cunhou uma frase célebre “não há nada mais z do que a classe A”.

Pois bem, os anos correram, muita água passou sob a ponte de nossa cultura e hoje temos Odair José destacado como figura de proa da cultura popular brasileira. Ainda que o gancho seja fácil, vale garantir que Odair José foi tirado daquele lugar… ou será que nós é que aprendemos o nosso?