Lembro-me, garoto ainda, no grupo escolar, criançada em fila cantando antes das aulas. Era lindo e eu gostava muito. Em dias especiais havia declamação e discursos, e assim tomei conhecimento de poetas como Castro Alves, Gonçalves Dias e sobretudo Casimiro de Abreu. O diretor, imponente, dava esclarecimentos breves sobre os homenageados e algum aluno destacado dizia versos que ainda ecoam em mim. E era tudo preparado com esmero. Havia torcida para ser escolhido, para estar “lá na frente”, ao lado dos professores.

Compondo uma de minhas lembranças favoritas, logo no começo de um ano perdido na memória, eu fui o indicado e então ouvi pela primeira vez o nome do “Príncipe dos poetas portugueses”, um tal de Luiz Vaz de Camões. Com o poema impresso, como se “Os Lusíadas” com seus 8816 versos coubesse em meia página recortada, ensaiei mil vezes em casa e proclamava aos berros “As armas e os barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana/ Por mares nunca dantes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana”… Treinei muito para não tropeçar na “Ta-pro-ba-na”. Nossa…

O tempo soube correr e já aluno do ginásio, no colégio interno, voltei àquela ode examinando os versos em decassílabos com as tônicas na 6º e 10ª, junto com detalhes das 1102 estrofes em oitavas com rimas cruzadas. E me maravilhava, aliás maravilhava mais vendo a incoerência entre a disciplina métrica de um autor em contraste com uma vida tão imprópria, digna de alucinante personagem de ficção.

Nascido em Lisboa aos 12 de março de 1524, morto aos 56 anos, como soldado passou 17 anos nas colônias portuguesas: Índia, Macau, Moçambique e em pontos da Arábia, tendo inclusive perdido um olho em combate no Marrocos. Depois de colecionar muitos, incontáveis, amores, alguns lícitos, mas a maioria condenáveis, tornou-se ardente fervoroso e, católico, morreu santamente. Uma vida tão atribulada, contudo, teve entre tantos episódios excepcionais um destaque formidável. Quando no caminho para Goa, já com o épico poema concluído, mas ainda não publicado, o navio em que estava naufragou. A essa altura, viajava na companhia de sua amada à época, Dinamene – nome inspirado na ninfa mitológica grega das águas – e no desespero Camões viu-se ante um crucial dilema: quem ou o que salvar, o poema ou a amada? O corpo de Dinamene desapareceu nas profundezas do mar em plena tempestade, e em 1572 o poema foi publicado…

No quinto centenário da morte do “patrono da literatura portuguesa”, recupera-se a fabulosa série de 211 sonetos, inventário afetivo, aula de perfeição lírica e métrica. Quase sempre ofuscado pelo brilho de “Os Lusíadas”, a farta mostra poética camoniana tem ficado à sombra, ainda que alguns de seus versos insistam em se colocar às luzes, e, dentre tantos dois me comovem, e juntos permitem supor a validade dos amores plenos, o primeiro apaixonadamente reza que

“Amor é fogo que arde sem se ver,

É ferida que dói e não se sente,

É um contentamento descontente,

É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,

É solitário andar por entre a gente,

É nunca contentar-se de contente,

É cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade,

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.”

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”

 

Que dizer diante de tanta beleza?! Melhor ler, reler e ler mil vezes mais… Mas em mim outro soneto se conecta e lateja intermitente, este relativo à saudade e a separação sempre em luta contra o luto ou a perda:

 

“Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou”.

Outra vez: que dizer? Vale mais o rigor métrico, a rima rica, ou a profundidade sentimental? E repete-se a mesma recomendação: melhor ler, reler e ler mil vezes mais… E, a cada leitura, como se singrássemos por “mares nunca d’antes navegados”, vale celebrar a eternidade que desmente os 500 anos sem Camões.