Me senti assanhado ao tomar conhecimento dessa publicação, livro póstumo, revelador de uma história intensa
Não sou do tipo que externa angústias. É claro que tenho aflições, algumas de difícil controle, mas… mas aprendi a me segurar. Pois bem, como de hábito, abri o jornal e cumpri o ritual de leitura: editoriais, artigos de fundo, dedilhei caderno por caderno. Depois de conferir que ser brasileiro implica exercitar diuturnamente seu cadinho de paciência, cheguei finalmente ao encarte de cultura. Sabe, essa estratégia de leitura é muito boa: arte, crítica instruída, teatro, música, indicações de programas propositivos revitalizam. E foi assim que cheguei à notícia do “novo” romance de Gabriel Garcia Marques, intitulado “Em agosto nos vemos”.
“Assanhado” é uma palavra esquisita, difícil de aplicar na oficialidade de texto escrito para jornal, mas foi exatamente o que senti ao tomar conhecimento dessa publicação, livro póstumo, revelador de uma história intensa, tramada em modestas 132 páginas. E minha empolgação galopou mais ao saber da tradução foi feita por quem, creio eu, melhor entendeu as sutilezas do complexo Gabo. Eric Nepomuceno é um desses casos raríssimos de tradutor que não se sobrepõe ao traduzido e incorpora o espírito da escrita autoral, coisa fina. Aliás, um merece o outro.
Livro póstumo, revelador de uma história intensa
A vida é curiosa e força diálogos complicados com nossos eus invisíveis. Meu primeiro impulso foi sair correndo, esperar a livraria abrir, comprar o livro físico (desculpem-me os moderninhos, mas não consigo ler em telas), mas tinha um compromisso inadiável: dentista. Tive que me domar e nem dei bola para a dor, anestesia, incômodos de tratamento de canal. Saí voando para a livraria mais próxima, com a certeza de encontrar o texto. Deu certo, Papai Noel existe, conclui…
A volta para a casa me fez lembrar os 17 anos do retorno de Ulisses depois de uma década longe de casa, mas venci o tempo e a distância. Odisseia. Gosto de ler sentado em uma determinada poltrona que me abraça com conforto e, com roupas velhas, descalço, me deixei flanar. E não poderia ser de outro jeito. O enredo é delirante: uma senhora distinta, casada, que a cada mês de agosto viajava para uma ilha caribenha a fim de depositar ramos de gladíolos na tumba da mãe. Ano após ano, a prática ia se tornando metódica, na cadência daquela resignada senhora. Repetindo rotinas, servindo-se sempre do mesmo hotel, comendo o mesmo sanduiche, mantendo os mesmos horários, o “mesmismo”, por fim, um dia, encontrou seu reverso. Aconteceu de uma noite aceitar o convite de um desconhecido que, embalando conversa sedutora misturada com gim, levou a distinta senhora para o quarto. Quarto, cama, sexo e algo se transformou no sentido da vida de Ana Magdalena. E mudou de maneira a compassar o calendário dos próximos anos, marcando agosto como o mês desejado, permissivo e revelador de interioridades catárticas.
Livro com temática amorosa-sexual que Gabo queria destruir
Sou daqueles leitores crônicos de Garcia Marques e mesmo tendo “Cem anos de solidão” como um dos cinco livros favoritos, não descarto a aproximação de outros complementos essenciais para o entendimento do conjunto da obra daquele Prêmio Nobel colombiano. E assim conecto a temática amorosa-sexual deste a dois outros livros irmãos “Do amor e outros demônios” e o delicioso “Memórias de minha putas tristes”; o primeiro de 1994 e o segundo de 2004. Não diria que há continuidade nas tramas, posto que os dois primeiros conduzem a narrativa pelo olhar masculino e o último, pela mirada feminina. Mas é nisso que reside o brilho desse escrito mal-acabado que, diga-se, foi rejeitado pelo próprio autor que o pretendia em cinzas, como outros considerados ruins, indignos da companhia dos que elegeu publicáveis.
Leitores puristas hão de reconhecer “cacos” na redação e até incoerências, pois o texto não foi finalizado e, em termos biográficos, situou-se na fronteira da demência do autor. Depois de 10 anos da morte de Gabo, os filhos optaram pela publicação que, no mínimo, explicaria a transversal proposta pelo pai que partiu do extraordinário para o ordinário. Não mais tratava-se do mundo fantástico e mágico, do tempo presente perdido no passado tradicional. As travessuras de Ana Magdalena marcam a metamorfose para a modernidade vivida por uma mulher que para homenagear a mãe, permitiu-se. E permissão passa a ser palavra mágica, chave, alternativa qualificador da personagem e também para significar o epílogo de um escritor excepcional que nas imperfeições de “em agosto nos vemos” humanizou a ilicitude amorosa e a própria obra.