Dois episódios marcaram essa semana: 1) a decisão do Planalto para que não houvesse qualquer manifestação a favor ou contra os 60 anos do golpe militar em 1964 e 2) a ambiguidade de Lula frente as Forças Armadas sobre a prometida recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Trata-se de um único tema: o relacionamento do poder Executivo com as Forças Armada (FFAA). Embora similares e contemporâneas, a nossa história recente não acompanhou os rumos que marcaram a ditadura militar no Chile e na Argentina que puniram os responsáveis pelos crimes ali cometidos.
Michelle Bachelet, mulher presidente da República na história do Chile, foi aconselhada a não “remoer a história” para não “dividir a sociedade” nem praticar “revanchismo”. Mas decidiu construir um Museu de Memória e Direitos Humanos, inaugurado em 2010, três anos antes do aniversário de 40 anos do golpe militar. Enfrentou os negacionistas da ditadura e entregou não só um monumento de reparação coletiva por atrocidades contra a vida, mas um motor de educação democrática. Permitiu não só lembrar de tragédia histórica, mas praticar o compromisso de não repeti-la.
Michelle Bachelet, eleita presidente do Chile
Depois de julgar e condenar os militares responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura imposta com o respaldo do governo norte-americano, a Argentina enfrenta nas ruas os retrocessos e o negacionismo da ditadura que Milei tentar impor. O tempo ainda não foi suficiente para enterrar definitivamente no lixo da história episódios que ainda estão com feridas abertas.
Há quem diga que o presidente Lula acertou ao vetar eventos de repúdio ou de apoio aos 60 anos do golpe militar no âmbito do governo federal. O argumento é que ele preside todo o povo e deve sempre buscar a convergência da unidade nacional. A justificativa é que país ainda está enredado com a fracassada tentativa de golpe e com o alto grau de polarização política.
A decisão de Lula de vetar atos no âmbito do governo não teria o sentido de compor com os militares nem de cooptá-los, mas sim de poder comandá-los segundo a Constituição e de imprimir uma nova orientação profissional e modernizadora a sua formação. Não conseguirá fazer isso se estimular divisões.
A tarefa de promover debates e atos de repúdio ao golpe seria da sociedade civil, dos movimentos sociais e dos partidos políticos. As esquerdas teriam perdido a capacidade de mobilizar e de sustentar atividade política forte no enfrentamento da extrema direita. Esses são alguns dos argumentos dos defensores da posição assumida pelo governo federal. Bastante razoáveis.
Manifestação das Mães da Praça de Maio, na Argentina
Mas é inaceitável o governo federal proibir a lembrança do golpe apenas para afagar a instituição militar visceralmente envolvida numa nova tentativa de golpe e se prevenir com a “irritação” de generais. Lula nos avisa por seus porta-vozes que prefere “pacificar” as relações com
militares. Entre a memória e o esquecimento, o idealismo e o pragmatismo, o meramente simbólico e o material, acredita optar pelo lado direito da equação. O lado esquerdo seria uma bobagem a ofuscar o que importa.
Reproduzo a conclusão do jurista Conrado Hübner Mendes em seu artigo à Folha de São Paulo:
(Lula) “Acredita fazer concessão em nome de outras prioridades, como redução da pobreza, combate à fome e geração de emprego. E não percebe que inclusive isso, a possibilidade de vida digna do trabalhador, preto e pobre, depende da neutralização do militar que continua a poder lhe dar tiros. Na pior das hipóteses, o Superior Tribunal Militar absolve o atirador com base em sua “legítima defesa”.
E assim Lula entrega o mínimo do mínimo, sem pedir nada em troca. Nem o fim da aposentadoria das filhas, nem responsabilidade orçamentária, nem subordinação à autoridade civil, nem coisa alguma. Um jogo de soma zero (“winner takes all”, ou “milico takes all”).
Bachelet manda um recado, citando poema de Gonzalo Rojas (“El espejo”): “Só se aprende aprende aprende, a partir dos próprios erros”.