Cirurgia de câncer da próstata
Pois é, aconteceu comigo. Conto: metodicamente cumpria a rotina de exames de saúde. De tal maneira levava a sério esse compromisso que, para não me esquecer, escolhia o mês de aniversário para as vias-sacras. A pandemia, porém, fez com que interrompesse o hábito e assim deixei passar 1921 e 22. Foi fatal. Retomando a prática, em 23 marquei hora e confiante comecei a sequência de consultórios pelo urologista. O exame de toque foi rápido, como rápido foi o apagamento do sorriso do médico. “Não tenho boas notícias”, disse-me ele em tom grave. E não eram mesmo animadoras as informações seguintes. A palavra “urgente” fez ligar o sinal de alerta e comecei os trâmites para empatar autorização do seguro, hospital e cirurgião. Em três semanas eu era apresentado a um robô que serviria de instrumento para a “operação radical”.
E a cabeça? Ah, a cabeça!… Tudo atropelado, confusão com agendamento, exames preparatórios, mudanças de compromissos já definidos. Tudo enfim motivava a pressa, e a pressa tratava de impedir maiores reflexões. Independente dos embaraços burocráticos, porém, havia a noite, o silêncio e nele a crescente cobrança: “como deixei isto acontecer”. Determinei de saída que não externaria preocupações dramáticas, e estava decidido a não afetar familiares e amigos com as explosões que em mim se armavam. Se consegui? Fiz o que pude, e até onde deu. Mas foi pouco, acho.
Glândula presente apenas nos homens, localizada na frente do reto, abaixo da bexiga
Tendo passado por processo próximo com minha esposa que morreu de câncer de mama, supus ter aprendido trabalhar com a opinião de amigos. Sempre achei estranho o trato dado por pessoas de fora dos contextos pessoais. O medo da palavra câncer, as recomendações de médicos e remédios revolucionários, as mandingas e truques mágicos, eram práticas que julgava dominadas. Mas isso foi pouco, logo chegou o momento de desatino, e então repeti a ladainha dos acometidos: “por que eu? “ e “como vai ser daqui para frente”?
E comecei a bronquear, a maldizer o mundo, a ficar bravo. Soltei as amarras que prendiam minha paciência. Não deve ter sido fácil para amigos que se achegavam com mimos carinhos, exercitei, com alguns, a rispidez e lembro-me de certa visita que me trouxe um presente e zangado com meu interior fiz questão de não abri-lo de imediato. Outro muito querido contava casos de curas e na medida da declamação de superações, eu bufava de raiva, rezando para que ele parasse com aqueles “contos da carochinha”. Demorou até que domesticasse impulsos e achasse meu próprio caminho de aceitação. Duas atitudes me ajudaram: uma primeira, e mais intimista, foi ler muito do que escrevi vida afora: diários, cartas, trabalhos acadêmicos, livros. Outra, esta mais consequente, a organização de um grupo de homens que passavam pela mesma experiência.
Por ocasião da cirurgia, em situações comuns de orientação para a continuidade do tratamento, acabei por conhecer mais 4 parceiros que atravessavam a mesma prova. O mais velho tinha 83 anos, eu com 80 e os demais, um 67, outro 56 e um ainda mais jovem, com 52 anos. Trocamos telefones, organizamos um grupo de WhatsApp e iniciamos uma conversa marcada a cada semana. A proposta era discutir os desdobramentos da cirurgia, reação aos medicamentos e, sobretudo, a troca de experiências das alterações de nossos corpos.
Confesso que minha primeira atitude foi buscar o que existe escrito sobre o assunto e fiquei surpreso com a fartura de publicações sobre a doença (tipos de câncer, tratamento natural, como vencer o problema, fim da hiperplasia prostática), mas nada, nada, sobre aspectos pessoais, psicológicos. E foi imediata a organização temática do grupo: questões ligadas à masculinidade. A potência sexual e os relacionamentos com pessoas do círculo afetivo íntimo afloraram de imediato e a carência absoluta de grupos de apoio, se mostrou fatal. De igual maneira a falta absoluta de escritos ou abordagens sobre aquela/nossa realidade. Tudo se instalou logo no primeiro contato, o mais jovem soltou a pergunta: “vou ficar broxa?” e era notável o desespero de quem queria saber mais do que os efeitos recomendados por tratamentos com a tadalafila.
Faz hoje exatamente um ano que o grupo existe e durante este tempo aprendemos a nos segurar e abertamente discutir intimidades necessárias e interditas na nossa cultura. Em uma das sessões não faltou o desespero de um dos nossos que disse “estamos muito atrás das mulheres, olhem quantos trabalhos, livros, artigos existem sobre mulheres com câncer e nós homens nada sabemos”. Os seguidos debates ampliaram o escopo temático e, mesmo buscando informações fora do campo relativo à próstata, tivemos dificuldade em situar a problemática da masculinidade tóxica. Por certo existem antropólogos atentos ao tema em geral, mas ninguém capaz de visitar os interiores da experiência dos homens com problemas de próstata, o câncer do homem.
Aconteceu de há três meses um dos nosso vir a óbito e, ainda que os demais aparentem bom estado de saúde, foi-nos um choque. Choramos juntos. E muito. E serviu de consolo o dizer que saudou o grupo como suporte para tanta fala de diálogo. Continuamos e, além dos tratamentos regulares, aprendemos superar a prostração que aliás é palavra próxima a próstata.