Franz Fanon escreveu “Pele negra, máscaras brancas” e “Os condenados da terra”, uma prova de seu compromisso com o enfrentamento da violência colonial
Fiquei pensando: e se me dissessem que sou um “branco de alma negra”? A questão surgiu depois de ler uma referência de Monteiro Lobato – “negro de alma branca” – dirigida a um dos personagens mais tocantes da tradição contista brasileira, o “Jardineiro Timóteo”. Para qualificar o negro de tradição escravizada, Lobato o enquadrou em uma das mais perversas memórias do linguajar brasileiro descolando, contudo, a pecha negativa da compatibilidade entre a cor da pele e a suposta escuridão da alma. No lugar, extrapolando os limites do racismo típico do primeiro quartel do século XX, o escritor evocava a branquitude como sinônimo do que era puro, apropriado, ideal e, como exceção, a bondade daquele negro preenchia os quesitos necessários. O enredo do conto, aliás, mostra a sensibilidade de Lobato afeiçoando o cultivador das mais lindas flores a situações da vida da família do senhor fazendeiro, dono de tudo. Timóteo, sem saber ler e escrever, marcava com canteiros os acontecimentos da vida senhorial.
Fala-se hoje em “racismo reverso”, ou seja, na consideração do avesso das formas brancas plasmadas no jeito brasileiro de classificar os tipos nacionais. Identificar nos agredidos a inversão das práticas ofensivas é um subterfúgio bandido que, não obstante, tem sido usado em diferentes situações. Dizer por exemplo que porque há “Dia das mulheres” deve haver “Dia dos homens”, ou porque há “Dia das Crianças” deve ser criado “Dia dos adultos”, é apelar para uma correspondência conservadora, atrasada, atenta a deixar tudo como está. E isso se agrava quando o debate racial se apresenta como ordem do dia. E como é necessário abordar tais assuntos, em particular no momento em que o movimento negro recrudesce sua luta por justiça social e desafia nosso apoio. Sim, a luta é de todos e não vamos melhor sem a adesão geral.
Não são, contudo, poucos os entraves que temos em nossa cultura despreparada para discutir essa questão. Aliás, o persistente e secular silêncio sobre a contenda é uma das mais sutis e complexas dimensões do problema. Nunca falamos seriamente sobre o assunto e até insistimos em ser um país sem problemas raciais, como se não tivéssemos cerca de 56% da população sub-representada em quase todas as esferas da vida pública. Desde que isto tenha se plasmado no metabolismo nacional, por séculos acreditando que nossa história é incruenta, sem derramamento de sangue, ostentando aos berros a farsa da “democracia racial”.
Enquanto em outras zonas o problema racial ganhou contornos mais nítidos – como nos Estados Unidos ou na África do Sul – no Brasil a naturalização da violência e o disfarce cultural nos poupou de enfrentamentos que, latentes, agora explodem de forma a desnortear o contexto que exige mudanças. Lembrando que nos Estados Unidos desde 1877 as Leis Jim Crow marcaram juridicamente os lugares de cada um, determinou-se exatamente o comportamento das partes definindo a supremacia branca. Tudo claramente demarcado pelo crivo legal. O mesmo ocorreu na África do Sul com o Apartheid que, desde 1910, pelo direito à terra segregava negros, despossuídos, postos contra proprietários brancos (britânicos e holandeses). No Brasil, ainda que leis pontuais existissem, jamais houve clareza na prática. Tudo se resolvia “tradicionalmente”.
A ativista Cida Bueno explica o efeito da longa duração do nosso tipo de racismo dizendo que constituímos “um estado passivo, uma estrutura de facilidades que os brancos têm, queiram eles ou não”. E mais adiante conclui é “uma herança presente na vida de todos os brancos, sejam eles pobres ou antirracistas”. Resta-nos, portanto abalar os pilares dessa condição explicada na “cumplicidade silenciosa” que nos ambienta resultando o chamado “medo branco”.
Aproveitei as reflexões permitidas por defensores da questão negra atual para medir minha percepção sobre o racismo. Sem dúvida, acatar Lobato racista – ainda que dono de chaves que abriam portas como a educação e o acesso aos livros – me levou pensar na oportunidade de enegrecer minha alma cidadã. Mais, espero o dia em que tenha a honra de ser apontado pelos negros como um entre os brancos que merecem ter alma da cor da pele daqueles construtores do Brasil.