Sei lá como me caiu às mãos o estranhíssimo poema de Otávio Azevedo dizendo “Obesidade abstrata/ O que não mata engorda/ Acredito nessa verdade/ Já estou de barriga cheia/ Cabeça cheia/ Alma cheia/ Tudo está cheio, mas não transborda! / Me sinto um obeso por engolir palavras e problemas demais/ Não quero ser tão pesado assim/ O que a sociedade dirá de mim?/ Chega de engordar/ É hora de morrer!” Fiquei chocado e me perguntei da relação entre padrões de beleza e obesidade? As respostas vieram gordas, demandando duas ordens de reflexões: uma de teor médico e outra estética, ambas ligadas às representações do corpo e suas consequências pessoais e sociológicas.
A Organização Mundial de Saúde, desde 2003, classificou a obesidade como grave problema de saúde pública, integrando a lista dos dez maiores fatores de risco para o bem-estar global. Vista como uma epidemia, a obesidade tem assumido proporções alarmantes, sobretudo nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Sob essa perspectiva, a sondagem histórica revela que a consideração da “gordura” perfaz um arco que a converte de postura positiva – como atestado de saúde – a mal a ser combatido como anomalia mórbida. Em meio à essa trajetória um mundo de contradições nos atordoa: a um tempo multiplicam-se campanhas para emagrecimento e, de outra feita, é absurdo o número de propagandas de comidas, restaurantes e programas de televisão.
Há até quem romantize a obesidade
Em termos médicos, cabe lembrar que a obesidade sempre incomodou estudiosos e que há mais de 2 500 anos Hipócrates, pai da medicina, falava dos perigos de excessos, inclusive apontando índice de mortalidade mais elevado em indivíduos, digamos, rechonchudos. Seu discípulo, Galeno, estabelecia que a obesidade poderia ser distinguida como obesidade natural ou moderada e obesidade mórbida, excessiva. Galeno afirmava ainda que a obesidade doentia era consequência da absoluta falta de disciplina de indivíduos desleixados e aproximados da anormalidade, e, para combater tais “deformações” preconizava tratamentos que incluíam: corridas, massagens, banhos termais e alimentos de baixo teor calórico. Assim estavam postos, desde a raiz antiga, os critérios de tratamento que acompanham questões ligadas ao abuso de peso e à regulação do corpo ideal.
Padrão helênico
É preciso lembrar que na Antiguidade clássica, sob o padrão grego, o culto ao corpo era fator primordial a ponto de justificar expressões que atravessaram os tempos como “beleza grega”, “perfil grego”, “tipo helênico”. Pela percepção grega, a luta por alimento teria evoluído da necessidade para o prazer, e a história da humanidade seria marcada pela evolução entre a sobrevivência e a fartura. Em termos de registro, a peça “O banquete”, de Platão, dá conta das mudanças de significados relativos à fome e a abastança. No mundo moderno, contudo, tais demandas mudaram e contrastam com a descomunal oferta de alimentos e progressivas conquistas em favor da satisfação, que tende a nos tornar cada vez mais inativos e progressivamente obesos.
Pelo enfoque estético, sem desprezar as interpretações biológicas, sabe-se que a obesidade e a magreza estão vinculadas a problemas psicossociais que implicam integração ou exclusão sociais. Seria errado, pois, ver o excesso de massa corporal apenas pelo viés médico, desprezando a malha de implicações que inscreve o modelo ideal de corpo. Assim, as representações da obesidade se formulam como questões presas às tramas da cultura, da sociedade, do mundo do trabalho, como decorrências do consumo. A palavra estética está ligada à sensibilidade, fato este já enunciado por Platão, ao caracterizar as ambições humanas, definindo “os três desejos de todo homem: ser saudável, rico por meios lícitos e belo”. A beleza do corpo, portanto, condicionaria a felicidade, algo como só são realizados os bem feitos de corpo. Foi assim que a cultura se moldou, formulando padrões de referência aos ideais da aparência. Tais modelos, contudo, variaram ao longo dos tempos.
Padrão modelo fashion
Na história da representação do corpo, pode-se distinguir três momentos capitais: o primeiro no Renascimento; o segundo na virada do século XIX para o XX e último, depois da Segunda Guerra. No primeiro caso, as Madonas arredondadas, com faces rosadas, seios fartos, metaforizavam saúde; a virada do século XIX para o XX marcava o surgimento de novos papeis sociais, em particular para as mulheres, que então ganhavam o espaço público, mostrando a exuberância engordada, símbolo de fertilidade e, finalmente, o momento da contracultura, onde a variedade de padrões corpóreos e a multiplicidade de complementos de beleza passavam a ser aceitáveis.
O resultado de toda essa trajetória está exposto aos nossos olhos. Temos muitas informações, fato que nos atormenta com paradoxos pendulares: de um lado temos refinados apelos para engordar, de outro os alertas para emagrecer… no meio nós como fiéis de uma balança infiel às nossas vontades.