Ela é irresistível, insubstituível em seu gosto doce, meloso, denso, pecaminoso. Haja glifage
Meus pares hão de me compreender e solidarizar: ser viúvo convicto é um problema perturbador, chato. A sociedade – a mesma que aceita casamentos múltiplos e acata o divórcio – é impiedosa com os viúvos. Confidencio que por diversos motivos tenho horror do final do ano, e tudo se agrava quando amigos de distintas castas nos convidam para festinhas e insistem “olhe, pode levar alguém”, ou os mais agressivos exultam “não se preocupe, convidei uma pessoa perfeita para você, vai ver só”. O antropólogo que habita em mim levou-me a concluir que a sociedade pós-moderna se abriu a mil inovações, mas ainda não aprendeu a respeitar a opção de viúvos que preferem se manter solitários. Nem vou explorar as razões pessoais ou coletivas que justificam essa escolha, mas devo dizer que é muito aporrinhante, muito mesmo, ter que engolir a inconformidade alheia a respeito da solitude viúva. Não estou fazendo nenhuma apologia ao modelo clássico, machadiano, de viuvez, mas não há como deixar de pedir respeito.
Mas não é só no Natal que somos desafiados. É até pior no Dia dos Namorados. E aconteceu comigo esta semana. Andava num shopping e cansado de procurar por prosaicos parafusos para pregar um modesto quadro na parede, inconformado com a ausência de uma loja especializada nesses apetrechos, medindo a inutilidade de 400 postos sem um sequer que atendesse aquela demanda, ouvi à porta de alguns estabelecimentos frases como “buscando presente para a companheira?”; “entre que encontrará o que procura para sua cara metade”; “temos o presente que o senhor quer para a namorada”. Sabe, fui ficando esquentado, mas tão irado que frente a atendente de um grande magazine resolvi contestar: “moça, eu estou procurando parafusos e não é para minha mulher, namorada ou algo parecido, preciso pregar um quadro na parede e não acho onde comprar um parafusinho sequer”… Pois é, como resposta tive um discursinho enviesado: “mas ‘ela’ pode querer uma roupa nova para ver o quadro”. Primeiro pensei em me descabelar, mas lembrei-me que sou careca e então restava o tal risinho amarelo. Ri muito aliás, mas não comprei a “roupa nova” pois insisto em não ter para quem dar. Caminhei um pouco mais, e alguns passos adiante tomei um delicioso cafezinho antes da frustrante volta ao lar solitário.
Fracassado – fracassadíssimo e objurgando a inutilidade de tantos estabelecimentos comerciais e nenhum vendendo parafusos – fiquei pensando em eventual namorada, numa mulher que, na ausência da insubstituível, preenchesse meu imaginário carente de permuta, pessoa que aquecesse meus sentidos e inspirasse meus mais ardentes e reprimidos desejos. E me veio à cabeça a imagem constante e inescapável daquela moça faceira, lasciva, tentadora, aquela que frequenta o imaginário de um coletivo gigante, essa mesma que estampa a latinha do leite condensado Moça. Explico-me, desde garoto mantenho-me louco por ela, uma tara mesmo, encruada. Tantos doces são possíveis com o produto que até me perco entre tortas, bolos, rosquinhas, mousses, biscoitos e brigadeiros. É lógico que nesse reino o badalado pudim é rei absoluto; sim, até imagino variações admitidas desde que seja sempre com a moça da latinha.
E tem mais: ainda que acolhendo vários usos há que ser da mesma m arca. Ela é irresistível, insubstituível em seu gosto doce, meloso, denso, pecaminoso. Haja glifage. Deixe-me sintetizar o falatório. A criatividade convida a variações, mas sempre com o mesmo produto, sempre com ela, com aquele avenal, desde 1921. Dizendo de outra forma, posso fazer muitas coisas, usar de diversos modos o mesmo produto, mas sempre da mesma marca, sempre ela com aquele sorriso Monalisa. E nem adianta ter outras dez alternativas diferentes, gosto mesmo é de uma só. Sou fiel até o limite, não vario, nem quero variar. Ela é meu teste de fidelidade.
Moral da história: voltei para casa sem o parafuso. Desisti de buscar uma loja de ferragens e, sabe, foi bom porque logo que abri a porta, olhei para a parede, olhei para o quadro, e notei que não havia escolhido o lugar certo. Conversei comigo mesmo, falei com meus botões e ouvi a voz ausente de minha mulher dizendo: olha, o quadro ficará melhor na parede do fundo. Soturno ouvi mais: aproveite, e por agora vá à cozinha e faça um pudim de leite condensado, aquele da latinha da moça que ficou em meu lugar.