Às vezes, a velocidade da digitação me atropela e então tenho que parar e me valer da escrita manual

Dia desses aconteceu de alguém se espantar por eu pegar o lápis, uma folha de papel e começar escrever à mão. Tratava-se de algo simples, colocar endereço e recado para pessoa que pedira favor. Ao olhar para o jovem estafeta notei espanto, e perguntei do que se tratava, foi assim que tive resposta inesperada: não sabia que o senhor escrevia à mão, aliás, nem sabia que tinha lápis. Pobre coitado, acho que desmaiaria se soubesse que tenho lápis pretos e coloridos, apontador e borracha, além de régua – compasso e esquadro não mais, mas sinto saudade. E uso tudo, como antigamente, com incontida naturalidade.

Depois da ida do jovem, deixei-me flanar sobre o significado dessa “mania”. É claro que sei que estamos na era das máquinas e até da dispensa da escrita substituída pela Inteligência Artificial. Sei tudo isso e tanto que me exigi desdobrar argumentos. Primeiro, constatei que posso ser considerado “fora do tempo”, antiquado, mas logo abdiquei tais predicados e passei a filtrar razões pessoais para o uso do lápis. E me veio todo um pretérito pessoal, lembranças de minha meninice de aprendiz na escola e até do cheiro das papelarias d’antanho. Daí aos dias de hoje foi um pulo e idem aos impedimentos que me obstruem quando redijo no computador. Por vezes a velocidade da digitação me atropela e então tenho que parar e me valer da escrita manual. É assim mesmo, posso passar horas teclando, progredindo em textos variados, mas quando chego em determinadas questões travo, e tenho que mudar o modo de redação: pego o lápis, o papel e soluciono as dificuldades. É assim que resolvo batalhas, com as armas, digo lápis, na mão.

Tão marcante me foi o episódio do rapaz desencadeador desta meditação que até careci de explicações ainda mais complexas. Descobri, por exemplo, que há uma lenda garantindo conexão estreita com Deus mediada pelo uso do grafite, mineral maleável. Deve ser verdade, pois milagres acontecem nesses casos. E como gosto de desenhar letra por letra, dançar com os dedos, valsear palavras inteiras, perpetuá-las pela graça de meus movimentos. Formular vocábulos à mão é como esculpir recados reservados, fiar tecidos que vestem sentidos, é como dar vida a corpos inanimados. E guardo um segredo: só escrevo à mão coisas importantes. Poético sim, pois escrever é declamar por desenhos. E tudo exigindo a camaradagem cultivada desde a mais macia idade, nutrida com sentidos curtidos pelos anos de experiência civilizada.

Por lógico, nem só de lírica vivem as explicações da escrita cursiva. Há também vantagens científicas como a permissão de juntar memória tátil com o arsenal de informações guardadas. Segundo tais pareceres, isso ocorre por conexões com áreas do cérebro que precisam de estímulos. A relação entre escrita e imaginação provoca a criatividade que pleiteia relação lógica entre ideias e pensamento expresso. Isso sem falar na requisição de foco, pois dadas as dificuldades de correções a cobrança de cuidados é muito maior e demandadora de destrezas que impõem habilidades motoras, forçando a coordenação e treinamento fino.

Já dizia LF Veríssimo “escrever à mão é malhar o cérebro”

Além dessas regalias, digamos científicas, há uma situação que exponencia a escrita à mão elevando-a no limite da experiência humana: ela é única, cada um tem a sua e em tantos casos é usada como meio de identificação pessoal – daí a exigência de “assinatura” em documentos fundamentais. E nesse quesito nem faltam intérpretes de letras que, inclusive, leem a sorte a partir da escrita cursiva. Já ouvi dizer de analistas que pedem redação para seus clientes, e, nesses casos, não é o conteúdo que interessa e sim a expressão gráfica. Aliás, também é significativo o caso de recomendação da escrita manual para pessoas estressadas. Essa situação, diga-se, é bastante interessante não só pelo exercício muscular dos dedos, mas também por distrair os usuários estafados com os computadores gerando uma pausa das telas e do ritmo acelerado da vida digital.

Lembro-me de, certa vez, ouvir que quem escreve lê 7 vezes. Deve ser por isto que os mais eficientes métodos de aprendizado de línguas impetram exercícios escritos e tem mais, nem é preciso escrever bem para ser claro, pois, como diz Luis Fernando Veríssimo, “escrever à mão é malhar o cérebro”. Engraçado que fiz todas estas avaliações escrevendo com lápis sobre papel e foi tudo tão espontâneo que me resta ficar perplexo por ter, depois de tudo, que digitá-las para o envio eletrônico ao editor. Perplexidades da vida moderna…