Dias Toffoli, Marcelo Odebrecht e a corrupção
Seria leviano afirmar que Dias Toffoli se aproveitou do momento de comoção nacional, quando as atenções estavam voltadas para a tragédia do Rio Grande do Sul, para pronunciar sua sentença. Entre ele e Ricardo Salles há diferenças. Feita a ressalva, o ministro do STF abriu a porteira e passou com a boiada no dia 21 de maio, quando anulou todos os atos da 13ª Vara Federal de Curitiba contra Marcelo Odebrecht, o ex-presidente da empreiteira, que foi rebatizada e agora atende por Novonor. O nome da empresa – uma contração de “Novo norte” – não deixa de sugerir, pela sonoridade, uma nova raça de gado: temos o Caracu, o Angus, o Nelore e, agora, o Novonor. Toffoli o colocou em liberdade, para pastar à vontade no capim verde das obras públicas.
A decisão do ministro choca por mais de uma razão, mas está longe de ser um raio em dia de céu azul, para usar uma imagem dileta do velho Marx. Ela faz parte do trabalho de desmanche da Operação Lava Jato, levado a cabo metodicamente por parte do Supremo, pela casta política e pela república dos bacharéis, cada qual na defesa de seus interesses particulares (não ser preso, ganhar muito dinheiro, as duas coisas etc.), disfarçados sob a retórica da defesa do estado de direito e do bem comum.
E, já que falamos do barbudo, estamos diante de uma operação tipicamente ideológica, em sentido marxista, que consiste em apresentar interesses particulares, de classe, como se fossem coletivos. Um exemplo de almanaque disso é a recente declaração de Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas, que reúne advogados militantes do antilavajatismo: “Toffoli tem tido posturas extremamente corajosas e deixado um rastro luminoso de exemplos edificantes na mais alta Corte Constitucional do país. É um verdadeiro legado, então nós temos que reconhecer, louvar e aplaudir”, disse ele à jornalista Mônica Bergamo.
Lula e Marco Aurélio de Carvalho, um dos dirigentes do grupo Prerrogativas
O causídico não se referia certamente ao Toffoli de 2018, aquele que, logo depois de chegar à presidência do STF, ao proferir uma palestra no Largo de São Francisco sobre os 30 anos da Constituição, disse que em 1964 não houve nem golpe nem revolução, mas “um movimento”. Esse Toffoli, pateticamente revisionista, estava bem sintonizado com o Zeitgeist bolsonarista, a ponto de contratar um general para assessorá-lo na condução do Supremo. O mesmo Toffoli que, em julho de 2019, com uma canetada, acolheu um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro e suspendeu as investigações que tinham como base dados sigilosos compartilhados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), sem autorização prévia da Justiça. Abria assim o caminho para que o escândalo das rachadinhas – uma tradição da famiglia Bolsonaro – permanecesse impune, como aconteceu.
Não deve ser esse o Toffoli que tem “deixado um rastro luminoso de exemplos edificantes na mais alta Corte Constitucional do país”, para retomar as palavras subalternas do representante do Prerrô, como se autodenominam esses descolados operadores do direito. Salvo engano, ele se referia às decisões que o ministro vem tomando desde o ano passado em benefício da Odebrecht/Novonor, esse orgulho nacional. Recapitulemos, pois, as obras do novo Toffoli.
Em setembro do ano passado, ele acionou o berrante pela primeira vez, anulando todas as provas obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht oriundas dos sistemas Drousys e My Web Day B, criados pela empreiteira para operacionalizar e camuflar o pagamento de propinas.
Em fevereiro deste ano, a boiada passou pela segunda vez: o vaqueiro togado determinou que estavam suspensos os pagamentos de multas decorrentes do acordo de leniência firmado pela empreiteira com o Ministério Público Federal. A Odebrecht ficava assim liberada de desembolsar 8,5 bilhões de reais. Poucos meses antes, em dezembro de 2023, o mesmo Toffoli havia suspendido o pagamento de multas previstas no acordo de leniência da J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, os reis do gado, no valor de 10,3 bilhões de reais. E tome berrante.
A decisão de agora, que zera o jogo para Marcelo Odebrecht, coroa as anteriores e avança no esforço de jogar na lata de lixo toda a Lava Jato. O argumento do ministro é sempre o mesmo: Deltan Dallagnol e Sergio Moro ignoraram que ao primeiro cabia acusar e ao segundo apenas julgar; os dois atuaram em conluio em nome de objetivos políticos; resolveram, em suma, brincar de Batman e Robin e acabaram acreditando que eram, de fato, a Dupla Dinâmica. Deu no que deu.
Não era preciso esperar pela Vaza Jato para concluir que Moro agia à revelia da legalidade. Desde a condução coercitiva espetaculosa de Lula até a liberação ilegal das interceptações telefônicas envolvendo Dilma Rousseff – a lista de suas extravagâncias é extensa, mas a imprensa só via virtudes no justiceiro de Maringá. O próprio STF, que lhe puxava as orelhas protocolarmente de quando em vez, foi decisivo para que a farsa que levou à prisão de Lula fosse consumada. Soa, por isso, um tanto cínico quando Gilmar Mendes enche a boca para dizer que Lula não teria sido eleito em 2022 se o STF não tivesse enfrentado a Lava Jato.
Da mesma forma, é cínico invocar o “devido processo legal” para consagrar a “indevida roubalheira ilegal”. Uma coisa é reconhecer a manobra jurídico-política que tirou Lula do jogo em 2018 e pavimentou o caminho para Jair Messias. Outra, bem diferente, é a corte suprema do país se acumpliciar da corrupção, passando o rolo compressor em tudo o que tem o selo Lava Jato, como se a caixa-preta da relação espúria entre o Estado e o grande capital privado não tivesse sido aberta, escancarando o modo de funcionamento do sistema político brasileiro.
Advogado Marco Aurélio de Carvalho
A Odebrecht confessou uma infinidade de crimes. Admitiu ter pagado pelo menos 788 milhões de dólares de propinas em dez países na América Latina, além de Angola e Moçambique. Nada menos que 77 de seus executivos, além de Marcelo, fizeram acordos de delação para atenuar suas penas.
Toffoli anulou os atos da Lava Jato contra o empreiteiro, mas curiosamente manteve a validade de seu acordo de delação. A jornalista Malu Gaspar, que conhece como poucos os porões da Odebrecht, escreveu o seguinte em O Globo: “A única explicação possível para o twist carpado jurídico é que, mantendo a validade das confissões, Toffoli cancela as penas, mas mantém os benefícios – como a possibilidade de voltar a fechar contratos com o setor público ou a garantia de os réus não serem mais processados pelos crimes já admitidos. A Odebrecht acaba de ganhar a licitação da Petrobras para as obras que terminarão a Refinaria Abreu e Lima. Sem o acordo, não poderia ter ganhado.”
Ou seja, a profecia de Romero Jucá se realizou – estamos assistindo a um acordão pela impunidade “com Supremo, com tudo”.
Mas o que é ruim sempre pode piorar. Proferidas por qualquer outro ministro do STF, as decisões envolvendo a Odebrecht seriam constrangedoras. Proferidas por Toffoli, são suspeitas. Isso porque Toffoli é “o amigo do amigo do meu pai”, como o qualificou Marcelo Odebrecht em mensagens trocadas com executivos da empreiteira no remoto ano de 2007. “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?”, pergunta Marcelo. “Em curso”, responde o executivo Adriano Maia.
Minitsro Dias Toffoli, STF, em viagem a trabalho na Europa
Essas mensagens fazem parte do material apreendido pela Polícia Federal durante a Lava Jato. A PF quis saber de Marcelo quem era esse fulano. E ele respondeu: “[A mensagem] refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do Rio Madeira. ‘Amigo do amigo de meu pai’ se refere a José Antonio Dias Toffoli.” Na época, o atual ministro do STF era o advogado-geral da União.
Em 2019, a revista Crusoé publicou essa história e teve que retirar a reportagem de seu site, por determinação de Alexandre de Moraes. Era gravíssimo, o Supremo censurava a imprensa para proteger um dos seus. Cinco anos depois, com esse caso praticamente esquecido, Toffoli ateia fogo às mensagens, livrando a cara daquele que o acusou. Eis o “rastro luminoso” e o “verdadeiro legado” que ele deixa ao país. Durma-se ao som desse berrante.