Chico e Renato Teixeira assumiram e deram conta do desafio de enfrentar o programa Balaio na TV Cultura
Sempre me confundo ao definir o lugar do domingo no calendário semanal, afinal seria o primeiro ou o último dia da semana? Respeito as variações judaicas que prezam o sábado (shabat) que vai do pôr do sol da sexta-feira até o poente do outro dia; na mesma ordem, acato a indicação islâmica que considera a sexta-feira (jumu’ah) o dia sagrado. De regra, contudo, ocidentais, situamo-nos entre aqueles que elegem – como fim ou começo – o “dia do senhor” (do latim dies Dominicus). Curioso é que em qualquer das três matrizes monoteístas preside a noção de “momento de descanso”, intervalo entre o tempo laboral e o direito à pausa. Com isso estou dizendo que segundo a norma (ISSO 8601) que regulamenta as relações planetárias, o domingo vale como término da semana e a segunda-feira inaugura nova jornada. Bizarrices à parte, desde o dia 10 de dezembro de 2023 os domingos de muita gente ganhou novo sentido.
Por gentileza especial de Renato Teixeira, fui avisado que a TV Cultura apresentaria às 9h00, semanalmente, um programa chamado “Balaio”. Foi o que bastou, dei um “oba” na minha agenda emocional, algo na base do “ele avisou, tá avisado”. E logo fui abraçado por um programa prá lá de envolvente. Junto com o filho Chico Teixeira, a estreia se deu com Almir Sater. Desde a primeira cena, um grilo falante me avisava da oportunidade do quadro, na sempre bem-pensada programação daquela emissora. E cá entre nós, o primeiro programa foi um divisor de águas, um marcador daquele tipo “antes e depois”. Bastou o anúncio para saber que Balaio “veio prá ficar” e, sorrateiro, se tornou uma espécie de missa musical com comunhão obrigatória. Não se trata apenas de arrolar intérpretes, compositores e críticos, mas de articular a presença musical de cada convidado com contextos próprios e com a comunicação pública.
O primeiro Balaio contemplou o amigo, irmão, parceiro e vizinho Almir Sater
É fato que todos, sem exceção, estávamos sentindo falta progressiva do saudoso Rolando Boldrin que, desde novembro de 2022, nos deixou órfãos. Mas não é menos verdade que, ainda enxugando lagrimas pela ausência do “Senhor Brasil”, no sussurro da melhor saudade, cismava-se: “e agora?”. O dilema da continuidade da boa música, não só sertaneja, latejava em um conveniente tempo de luto. Cogitava-se na figura de Renato Teixeira como possível portador daquele legado, pois, afinal, a simpatia garantida, a gostosura da “contação de causos”, a afinidade com questões de raiz, eram prendas comuns e indispensáveis.
Sinceramente, eu duvidava da transferência mecânica de um (Boldrin) para o outro (Renato Teixeira). E a sucessão dos “Balaio”, prova minha hipótese. Antes de tudo, cabe garantir a via de mão dupla na qual somente Renato Teixeira permitiria o livre trafegar: inegável a memória e a presença de Boldrin no Balaio, mas quanta inovação. Quanta! A começar pela presença simpática do filho – elo de passagem geracional e promessa de frescor continuado – até a música de apresentação, Balaio – que evoca a inesquecível Inezita no “balaio, meu bem balaio…”– essas duas pontas atualizam a ambígua “presença ausente” e faz a vida seguir “tocando em frente” numa piedosa “Romaria” do presente (Chico) a santuários do passados (Inezita).
Renato e Chico enfrentaram o desafio de substituir Boldrin
Falemos do cenário simples e apropriado, isso além do medido distanciamento do público. Fugindo do modelão palco x plateia, o que se tem é uma audiência coerente com as propostas do programa. Nada de muita gente – condição essencial para marcar a intimidade dos encontros caracterizadores de certa surdina acústica, algo digno do melhor aconchego. Aliás, intimidade é mesmo boa palavra para definir o programa que foge do espetaculoso, da estridência alucinante que tem dominado apresentações musicais recentes, e, reverso, o tom dialógico permite conversas fiadas com músicas sensíveis e reveladoras de situações que dão estrada a entendimentos desconhecidos. E não se trata de composições sertanejas apenas, é muito mais, mais mesmo que qualquer seleção de sucessos. Como uma antologia nostálgica, como perfume das canções que deixaram saudade, a boa música trazida ressuscita a alma do tempo passado, presentificando a qualidade da poesia que afinal marca a composição brasileira.
Ivan Lins e o Duo Rafael Beck e Felipe Montanaro e só uma amostra das mudanças ocorridas
Tenho proposto que o termo sertanejo é insuficiente para emoldurar a produção de Renato Teixeira. Às vezes até brigo com a crítica que o determina naquele quadrante apertado demais. Mesmo respeitando aproximações, percebo sua produção como uma espécie de memória seletiva ou síntese do que de melhor temos no cancioneiro nacional. É possível que haja mudança no dia e horário do Balaio, mas para onde for, certamente carregará a marca do que melhor temos e juntos, tenho certeza, deslocaremos o debate sobre o começo ou fim da semana. Com Balaio, onde estiver, sempre teremos domingos.