Elie Wiesel, escritor israelense prêmio Nobel, dizia que, solitário, Deus criou os homens porque precisava de histórias

O termo “narrativa” atualmente ganhou destaque como versão de fatos fiados segundo cada qual. E foi assim que listei expressões como: teia, fio da meada; trama; tessitura; alinhavar; perder a linha; amarrar os fatos; e sobretudo “emaranhado” que, aliás, remetem a teia de aranha. Pronto, está dado o começo da novela (que, diga-se, remete a novelo que também é fio). Curioso, fui buscar origens e achei três casos instigantes, reveladores de nossa dependência de histórias, tramas ou narrativas.

Comecemos pela conhecida lenda de Aracne. Conta a mitologia grega que havia uma jovem reputada na arte de bordar. Vaidosa, a moça provocou a poderosa Atena, deusa tecelã, para ver quem melhor trabalhava com os fios, e foi assim que produziu um tapete contanto a história dos desvios amorosos do pai. A obra, lindíssima, irou Atena que além de destruir o tapete resolveu punir a moça que, desiludida, tentou suicídio com as próprias linhas. Atena, apiedada com a atitude da tecelã, optou por pena menor e assim a transformou em feia e temível aranha, condenando-a a fiar teias eternidade adentro.

Aracne seria uma jovem reputada na arte de bordar

É da África uma outra lenda. Tudo teria começado num tempo em que os mortais viveriam sem ter o que contar sobre o próprio passado. Nyame, dono do céu, detinha todas as histórias, fato que tornava insuportável a vida humana. Anansi, um Homem-Aranha, preocupado com o caso, se propôs conquistar o repertório de Nyame. Teceu uma teia que o levava ao infinito e lá ouviu que faria o negócio em troca de brindes: um leopardo feroz, Osebo, bicho esfomeado e assassino; Mmboro, marimbondos de fogo; Moatia, fada invisível que rondava as florestas. Anansi anuiu dizendo que ainda daria sua própria mãe de lambuja.

A determinação de Anansi o colocou em frente ao terrível leopardo de quem ouviu que se deixaria amarrar se ele fosse ao céu ver Nyame. A curiosidade o fez refém, pois amarrado, “teiado”, virou presa. Com os marimbondos de fogo, Anansi se valeu de outro artifício: pegou uma cabaça e num orifício untou de mel e, em seguida, respingou água na colmeia fazendo com que os marimbondos fossem apresados.

Anansi apostou a própria mãe

Em seguida, Anansi fez uma boneca de madeira e a besuntou de cola, deixando-a onde as fadas dançavam em noites estreladas. Ao lado da boneca colocou um prato com inhame assado preso às mãos da boneca. E foi assim que, quando chegou Moatia, faminta, perguntou se podia comer o inhame assado. Anansi, que se escondera atrás da boneca, fez sacudir a cabeça, confirmando. Depois de saborear o quitute, a fada agradeceu, mas, sem ter resposta da boneca, irritada, disse que, se ela não reagisse lhe daria uma bofetada e, ao fazê-lo, teve a mão grudada. Ao vê-la daquele jeito, Anansi apareceu e, junto com o bicho e os marimbondos, a levou, como prometido. Antes, porém, passou pela casa da mãe, convidando-a para também ir, pois sabia que ela o repreenderia pelos métodos usados. Foi assim que o mundo ganhou histórias.

O Homem-Aranha hollywoodiano é um super-herói moderno, sucesso da empresa Marvel Comics, especializada em quadrinhos e argumentos para cinema. Criado na raiz dos anos 1960, o personagem é dos mais populares da industrial cultural. Essa ficção se baseia na existência de um acanhado jovem, Peter Benjamin Parker, nova-iorquino, órfão, criado por uma tia doente e um bondoso tio, Ben, no bairro de Queens. A despeito das dificuldades, o rapaz era bastante estudioso e frequentava o laboratório da escola onde fora picado por uma aranha geneticamente modificada por experimento de radioatividade. Os efeitos da mordida da aranha provocaram no moço mutações que afetaram seu metabolismo, porém, dotando-o da sensibilidade das aranhas. O fato que marcou essa descoberta se deu quando ele foi encurralado por um carro escapou, grudando-se na parede de um edifício depois escalado até o teto. Descoberto seu poder, resolveu que usaria aquilo para ganhar dinheiro. A estratégia ia bem, até que pressentiu que um assassino mataria o tio amado, e então, tomado por um sentimento de culpa, resolveu usar seus poderes para salvar pobres e desprotegidos. Guardando segredo de suas características, o Homem-Aranha se transformava na grande esperança da cidade que o respeitava como aracnídeo do bem. E as histórias de suas façanhas se multiplicaram.

Peter Benjamin Parker, nova-iorquino, órfão, virou o Homem Aranha

Moral da história, sem narrativas, verdadeiras ou falsas, não conseguimos viver. Todos, todos, precisamos de “contações”. Aliás, Elie Wiesel, escritor israelense prêmio Nobel, dizia que, solitário, Deus criou os homens porque precisava de histórias. Verdade verdadeira: necessitamos de causos, mesmo que sejam conversas fiadas e melhor se forem fiadas por aranhas imaginadas.