A trajetória de Euclides da Cunha tem todos os ingredientes das mais consagradas tragédias gregas

Sou bem chegado a uma história de amor. Quanto termina bem sinto-me leve e até saúdo a felicidade tangível. Talvez seja por isto que assisto novela e gosto de filmes melosos, desses bem “água com açúcar”. Aprecio tramas em que o casal supera dificuldades gigantescas, intrigas e disputas. E assim tem sido desde sempre. Lembro-me garoto ainda me perder em páginas da primeira fase de Machado de Assis quando ele ainda não era o mago realista. E delirava com “Ressureição”, “A mão e a luva”, “Iaiá Garcia” e não me conformava com o fato da heroína “Helena” ter morrido de asma.

Houve um tempo em que me dediquei a casos mais complexos e então devorava “Orgulho e Preconceito”, “Anna Karenina”, “Morro dos Ventos Uivantes”. Da safra brasileira, poucos me arrebataram tanto como “Grande Sertão, veredas”, onde Guimarães Rosa não economizou complicações. Pois é, ia filtrando histórias de amor na chave imaginária da “arte imitando a vida”, mas chegou um momento em que estudos biográficos me aproximaram de um caso em que a vida superou a arte.

. Nem seria exagero dizer que não conheço drama amoroso mais contundente que o do infeliz escritor. E tudo ganha dimensão quando contextualizamos a história no cenário nacional. O sucesso arrebatador da saga do agreste Beato Antônio Conselheiro contada pelo ex-militar e inquieto jornalista, engenheiro e professor de matemática, fizera de Euclides uma personalidade visível, sua desventura amorosa tornou-se, sem dúvida, o mais intrincado triângulo amoroso de nossa história. Não bastasse, eu diria que essa história de amor também é a mais doída e desgraçada que conheço.

Euclides da Cunha foi enviado O Estado de São Paulo para Canudos, na Bahia

Euclides foi casado com uma bela filha de militar, oficial republicano, Ana de Assis que romântica teve que repartir seu compromisso familiar com os dilatados ideais patrióticos do agitado marido. Ainda que o tema seja discutível, convém lembrar que o jovem Euclides, cadete, sempre teve rompantes explosivos e foi assim que, ao tentar quebrar a própria espada em visita de um superior militar, foi expulso das fileiras. É fato que depois, graças ao empenho do sogro, acabou voltando, mas sem vocação para as fileiras, afinal, deixou o Exército em favor do jornalismo.

Contratado pelo periódico “O Estado de São Paulo”, sendo já articulista conhecido, Euclides foi destacado como repórter para ir a Canudos, na Bahia, cobrir uma guerra que, julgada monarquista, aturdia a sociedade republicana recém-inaugurada. No ano de 1897, com o conflito entrando em sua derradeira fase, a quarta etapa, por três semanas passou observando os acontecimentos e, voltando com anotações que resultaram no grande épico nacional, cuidou de redigir o magnifico livro.

Mais tarde, Euclides, já personagem conhecido, foi destacado pelo Barão do Rio Branco para trabalhar na fronteira do Brasil com o Acre, Na ausência do marido, Ana muda-se com dois filhos para uma pensão e lá conhece um jovem cadete, Dilermano, com 17 anos. Nem se importando com a diferença de idade, ela com seus 33, mesmo casada, apaixona-se e se entrega a um romance tórrido. Depois de dois anos, ao voltar intempestivamente, Euclides encontra Ana grávida e o filho nasce loiro em contraste com os irmãos morenos. Euclides a perdoa e registra como seu o menino. O romance com Dilermano, contudo, continuava e decidida ela mudou-se para viver com o amante e, no dia 15 de agosto de 1909, num acesso de fúria, armado, dirigiu-se à casa do cadete que, aliá, era campeão de tiro, e com uma pistola, pelas costas tenta matá-lo, ferindo o irmão que ficou tetraplégico. Mesmo ferido Dilermano revida e acerta um tiro mortal em Euclides.  Este episódio de amplíssima repercussão ficou nacionalmente conhecido como “A tragédia de Piedade”, bairro onde os fatos se deram.

Barão do Rio Branco

Anos depois, em 1916, o filho mais velho de Euclides, também oficial do Exército Nacional, aturdido pelas desgraças familiares, opta por ele mesmo executar o agora marido de Ana Miranda e em ato transloucado tenta vingar o pai. Novamente Dilermano consegue se safar e com tiro certeiro mata o filho de Euclides. Sobre essa história, Glória Peres em 1990 produziu uma minissérie notável, “O desejo”, disponível no youtube e, na mesma linha, recentemente Mary Del Priori publicou um livro “Matar para não morrer”. Recomendo ambos, mas mais ainda a retomada de “Os Sertões”.