Símbolo sagrado, mítico, purificador e de fascínio inescapável

Já declarei mais de uma vez que valorizo profundamente a fidelidade amorosa e as amizades, dando menor importância às demais formas de lealdade. Quando me perguntam sobre arte, confesso que sou eclético — aceito tudo. Sinto-me vulnerável, quase como se Raul Seixas tivesse se inspirado em mim para compor “Metamorfose Ambulante”. Desavergonhadamente, declaro-me infiel até a raiz dos cabelos — mesmo sendo careca. Se hoje me perguntassem qual é o meu livro favorito, sem hesitar, citaria “Psicanálise do Fogo”, de Gaston Bachelard. Talvez essa escolha seja influenciada pelos terríveis incêndios que assolam o país de norte a sul. O fogo, no entanto, ao qual o filósofo-químico se refere, é um símbolo sagrado, mítico, purificador e de fascínio inescapável.

No imaginário coletivo, o controle do fogo é uma das conquistas mais antigas e importantes da humanidade, revolucionando profundamente a civilização. Sua domesticação transformou a forma como os primeiros seres humanos interagiam com o ambiente, se protegiam e se organizavam socialmente. O fogo, inicialmente vindo de raios, erupções vulcânicas e incêndios espontâneos, passou a ser controlado por volta de 1,5 milhão de anos atrás, pelo Homo erectus.

Filósofo e químico

A princípio, o fogo foi utilizado para aquecer, proteger contra predadores e iluminar a noite. Mais tarde, seu uso expandiu-se para o preparo de alimentos, facilitando a digestão e aumentando o valor nutritivo. Contudo, o fogo transcendeu os benefícios práticos: tornou-se o ponto de encontro das primeiras comunidades, contavam-se histórias e fortaleciam-se os laços sociais. Além disso, foi essencial na produção de ferramentas, armas e cerâmicas.

Simbolicamente, o fogo sempre teve significado profundo. Na mitologia grega, Prometeu se rebelou ao roubar o fogo dos deuses e entregá-lo à humanidade, concedendo-nos um poder divino, mas sofreu severas punições. Diferentes tradições usam o fogo de maneiras variadas, associadas aos rituais de purificação, transformação e presença divina. É assim no Hinduísmo, no Zoroastrismo, que mantém os “templos do fogo”, no Budismo, e especialmente no Judaísmo, com a chama da Menorá no Templo de Jerusalém e a vela do Shabat. No Cristianismo, o fogo é frequentemente associado ao Espírito Santo, como evidenciado no Pentecostes, onde o Espírito Santo apareceu na forma de línguas de fogo. Além dessas tradições, muitas culturas indígenas ao redor do mundo veem o fogo como um elemento sagrado com poderes de purificação e transformação, sendo frequentemente utilizado em rituais de passagem e cerimônias de cura.

Espírito Santo em línguas de fogo

Com o advento do capitalismo, o fogo ganhou novas funções durante a Revolução Industrial no século XVIII, movendo máquinas a vapor e transformando a economia. A queima de carvão, óleo e gás, impulsionou indústrias e meios de transporte. No entanto, o fogo também tem um lado sombrio.

A “maldição” do fogo evoca destruição e perigo. Historicamente, está associado a punições divinas e desastres naturais. Hoje, a emergência climática nos obriga a repensar o uso desse elemento poderoso. O aquecimento global acendeu o alerta e nos fez perceber o quanto subestimamos a capacidade da natureza de se regular. Infelizmente, o negacionismo ganhou força política, acelerando a destruição de florestas. Incêndios devastam ecossistemas inteiros e destroem a esperança de um futuro melhor. E o que dizer daqueles que fazem uso criminoso do fogo? Sim, essa gente existe.

Estudiosos e autoridades alertam sobre o desmatamento e os incêndios, mas, enquanto o debate ganha espaço, o país continua a arder. A ideia de que estamos próximos de um ponto de não retorno é dolorosa, e aceitar que anos de progresso material nos trouxeram a esse cenário é ainda mais difícil. Estamos exaustos e à beira de desastres irreversíveis. Temos saída? Há alternativas? É possível ter esperança? De quem devemos esperar alento?

Acredito firmemente que o futuro depende das próximas gerações. Há esperança nos jovens, que, ao lado de professores e ambientalistas, plantam novas sementes de mudança. Paradoxalmente, deixamos a eles os sonhos que envelheceram com a ganância das gerações passadas, inclusive da nossa. Cabe às crianças e alunos cultivar lições sobre o meio ambiente. Tudo depende deles agora, até nossas vidas, construídas sobre noções equivocadas de progresso.

É fácil delegar responsabilidades e permanecer inertes, mas o mínimo que podemos fazer é parar — ou, na verdade, apagar o fogo presente. Como agir de imediato? As eleições municipais estão aí e, embora tenham pouco a ver com questões ambientais imediatas, é essencial avaliar os candidatos em escala nacional. Que tal priorizar escolhas com base no compromisso deles com a natureza? Que nossos votos sejam o combustível para apagar o fogo da ignorância e alimentar a fogueira das novas gerações que hão de ser menos inconsequentes do que nós.