Eunice real e a Eunice representada pela genialidade de Fernanda Torres

Sempre gostei de cinema. Sempre. E meu prazer maior implicava ir às primeiras sessões – que antes chamávamos de matiné. Com a sala quase sempre vazia, eu me sentia meio dono da função. E, claro, com pipoca. Tinha o hábito de ir duas vezes por semana, e esses dias eram especiais. Fazia minha caminhada de cerca de dois quilômetros, matando dois coelhos com uma cajadada só. Voltava a pé, e a pauta era deglutir aspectos do filme. Ah, de preferência sozinho. Para ambientar o programa, sempre que possível lia as críticas, visando estabelecer um diálogo entre a orientação especializada e meu ponto de vista. Quase sempre discordava.

Com a chegada da pandemia, fui obrigado a mudar meus hábitos. Assinei canais de filmes e, com alguma naturalidade, fui mudando meus gostos. Antes, via sempre os lançamentos e apostava nos vencedores dos grandes prêmios. Durante a pandemia, com uma oferta ainda maior e mais variada, procurei compensar os prazeres dos cinemas de rua ou shoppings pela facilidade do cinema doméstico. Logo aprendi que não seria conveniente supor uma disputa entre as duas alternativas, mas sim aproveitar o melhor de cada uma.

Passadas as ondas de COVID-19, a tentativa de retomar os antigos hábitos se apresentou como um desafio. Continuei à caça dos lançamentos, mas agora em uma nova pauta, muito menos entusiasmado com as idas semanais às salas. Confesso que, no íntimo, havia sempre a tentação de voltar à prática antiga, mas… cada dia parecia surgir um novo motivo para adiar. E adiei até a semana passada. É lógico que houve uma festa interior, pois fui forçado a reconhecer que se passaram cinco anos desde a última vez que frequentei o cinema. E não foi tão natural voltar. Não só pela mudança na minha atitude, mas também pelas alterações no espaço físico: novas cores na fachada, a livraria ao lado substituída por uma lanchonete e as poltronas com novas cores. O público ainda estava escasso e até supus identificar alguns velhos frequentadores. E dei conta do quanto o tempo tinha passado.

Em “Ainda estou aqui” o drama é exposto por pequenos detalhes dilacerantes

O motor da minha mudança tinha nome: fui ver primeiro o filme Ainda Estou Aqui, e no dia seguinte, Malu. Frente ao primeiro, até senti que não assistia um enredo inédito, mas sim a confirmação de uma produção magnífica, amplamente divulgada, premiada, primorosamente dirigida por Walter Salles e protagonizada por Fernanda Torres, uma de minhas atrizes favoritas. O outro, embora com algumas variações, também foi recomendado pela direção de Pedro Freire e interpretações impecáveis de Yara Novaes, Carol Duarte, Átila Bee, entre outros.

Ambos os filmes são baseados em “fatos reais”, abordando passagens relativas a duas famílias cariocas. Em Ainda Estou Aqui, o enredo versa sobre o drama da família Paiva durante a Ditadura Militar no Brasil. O foco é a ação da matriarca Eunice Paiva em busca de seu marido, Rubens Paiva, deputado “desaparecido” nos anos de chumbo. A luta desesperada da família é temperada por um ambiente de medo e incerteza, com trilha sonora de Tim Maia, Gal Costa e Caetano Veloso.

Malu, por sua vez, percorre três gerações de mulheres, começando por Malu, uma atriz sempre em busca de trabalho, e seu conflito com a mãe conservadora e a filha dividida entre as duas. Em ambos os filmes histórias de afetos parentais, nas duas experiências um grande trauma centraliza a história, e a superação é a razão moral para a sobrevivência e lutas pessoais que se emendam na história nacional.

 

 

“Malu” expõe conflito de gerações e traumas familiares

Uma diferença fundamental chamou minha atenção: em Malu, a aceitação da problemática e a busca de mudanças na vida real ocorrem de forma mais intimista, com uma cinematografia simples e naturalista. A direção opta por um ritmo mais lento, refletindo o processo gradual de cura das protagonistas. Já em Ainda Estou Aqui, a movimentação é maior, com uma construção tensa, impulsionada por fatores externos de abrangência política. Ambos os filmes se destacaram na Mostra SP, com Ainda Estou Aqui sendo aclamado pelo público, enquanto Malu recebeu o Prêmio Paradiso, incentivando o cinema nacional, o que reforça a importância dessas produções no cenário cinematográfico de 2024.

Para mim, no entanto, o grande prêmio foi outro: voltar ao escurinho do cinema. Sentar-me novamente naquela sala, cercado pela penumbra, sentindo o cheiro de pipoca no ar e mergulhando na mágica da tela grande foi como recuperar um pedaço esquecido de mim mesmo. O verdadeiro prêmio não foi escolher entre Malu e Eunice, mas reatar meu próprio laço com o cinema.

E se me perguntarem qual a sensação, diria que é como reencontrar um velho amigo. Ele mudou; eu também. Mas, de algum modo, ainda somos os mesmos. Afinal, no fundo, o cinema não é só sobre as histórias que vemos na tela, mas sobre as que ele nos ajuda a contar dentro de nós mesmos.