O Rio está mais barulhento, mais agitado e mais insano do que nunca
Lembro-me das primeiras surpresas como estudante de História. É quase um rito de passagem ouvir os professores afirmarem, com ares de mistério, que fazer a história do tempo presente é mais difícil do que evocar as civilizações antigas. Como assim? Quer dizer que estudar egípcios mumificados e mesopotâmicos rabiscando tabuletas é mais fácil do que analisar um mundo onde temos registros digitais de absolutamente tudo? Parece brincadeira. Mas o tempo – esse cronista impiedoso – confirma que os velhos mestres têm razão.
Olhando ao redor, me pergunto: como entender este mundo frenético? A lógica parece ter saído de férias sem previsão de volta, e estamos todos à mercê de um roteiro escrito por um roteirista particularmente inspirado – e provavelmente mal-intencionado. Guerras acontecem como se fossem ofertas de liquidação, desastres ecológicos são tratados como notas de rodapé e líderes políticos mais parecem personagens de comédia pastelão. E, como se não bastasse, ainda lidamos com um fenômeno adicional: a ressaca pós-pandêmica, essa entidade estranha que tomou conta do mundo depois do apocalipse sanitário que nos trancafiou em casa por anos.
Estudar egípcios mumificados seria mais fácil do que analisar um mundo
Se alguém me pergunta qual é a maior consequência da pandemia, respondo sem hesitar: a urgência em recuperar o tempo perdido. E como essa pressa se manifesta? Em farras colossais, viagens desenfreadas, estádios lotados e, claro, no retorno triunfal da maior manifestação de insanidade coletiva já registrada: o Carnaval.
Primeiro, veio a febre das viagens. Com o fim das restrições sanitárias, parece que o mundo inteiro resolve se aventurar ao mesmo tempo. As companhias aéreas, que até outro dia estavam à beira da falência, agora vendem passagens a preços que fariam Marco Polo desistir da Rota da Seda. “Férias da vingança”, chamam.
Mas há outro setor onde a euforia pós-pandêmica encontrou terreno fértil: o futebol. Durante o isolamento, ver um estádio vazio era deprimente – parecia um ensaio para um filme distópico de quinta categoria. Agora, os torcedores voltam como se tivessem sido libertados de um cativeiro subterrâneo.
Os megashows também surfam nessa onda. Festivais como o Rock in Rio e o Lollapalooza vendem ingressos em tempo recorde. Cantores que passaram anos sem turnê são recebidos por plateias ensandecidas, e não é incomum ver artistas chorando no palco, emocionados com a energia do público.
Mas, se há uma expressão máxima do pós-pandemia, ela atende por um nome: Carnaval. O Carnaval sempre foi um evento grandioso, mas agora a festa ressurge com um vigor jamais visto. Parece que todo o excesso represado por anos é despejado de uma só vez. Os blocos de rua, que já desafiavam os limites da sanidade humana, dobram de tamanho. No Rio de Janeiro, a cidade inteira vira folia ambulante. Salvador pulsa com uma energia que faz um gerador termonuclear parecer fraco.
Estádios vazios de público durante a pandemia
As escolas de samba se preparam para um verdadeiro show de grandeza. Desfiles que já eram espetaculares agora têm um nível de produção digna de Hollywood. Enredos são pensados como nunca, fantasias brilham mais e os carros alegóricos desafiam todas as leis da física e do bom senso. Tudo para celebrar uma coisa: a sobrevivência. O Carnaval deste ano não é apenas uma festa – é um exorcismo coletivo, uma cerimônia de gratidão, uma declaração de que estamos vivos e pretendemos aproveitar cada segundo dessa nova chance.
Sempre acompanho a movimentação carnavalesca, mas confesso: o que antes parecia exagero agora é fichinha perto do que vejo. O Rio continua lindo, mas também está mais barulhento, mais agitado e mais insano do que nunca. Diria, sem medo de errar, que este pós-pandemia será estudado por historiadores do futuro como um fenômeno único. E a nós, no presente, incapazes de explicações cabe apenas exortar a festa e produzir mais elementos para a legenda que há de ser feita no futuro.
O que antes parecia exagero agora é fichinha perto do que vejo
Mas, no fim das contas, o que resta é uma sensação predominante de gratidão. Depois de tempos tão difíceis, poder estar no meio de uma multidão, gritar um gol no estádio, cantar em um show lotado ou pular Carnaval com os amigos não é apenas diversão – é um ato de resistência, uma celebração da vida. O mundo volta a girar, e ninguém quer perder um segundo sequer dessa nova fase. Afinal, se aprendemos algo nos últimos anos, é que o tempo é valioso demais para ser desperdiçado. Então, que venham os blocos, os sambas, os abraços apertados e os confetes jogados ao vento – porque a vida, agora mais do que nunca, pede passagem. Evoé Baco… Axé, minha gente…
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