A história é um grande palco onde fatos e ficções dançam juntos como um casal estranho: às vezes em harmonia, às vezes pisando no pé um do outro. Desde os primórdios, narrativas foram usadas para explicar o mundo, justificar atos questionáveis e até entreter. Mas será que toda história precisa ser verdadeira? Ou será que algumas são apenas uma bela mentira bem contada, como um tio exagerado contando vantagem no almoço de domingo? Afinal, se acreditamos que Pedro Álvares Cabral “descobriu” um lugar onde já moravam milhões de pessoas, por que não podemos brincar um pouco com a verdade?
Vejamos o caso do Dia da Mentira, celebrado em 1º de abril. Suas origens são um verdadeiro enigma, digno de uma investigação no estilo Sherlock Holmes – ou melhor, no estilo Inspetor Clouseau, já que a confusão aqui reina absoluta. Uma das versões mais conhecidas remonta à França do século XVI. Até 1564, os franceses comemoravam o Ano Novo em 25 de março, esticando a festa até 1º de abril, porque, convenhamos, qualquer desculpa para mais uma festinha é válida. Mas aí veio Carlos IX e decretou que o Ano Novo deveria começar em 1º de janeiro. O problema? Sem WhatsApp, Twitter ou mesmo um pombo-correio eficiente, muita gente continuou comemorando no antigo calendário e virou motivo de chacota. Recebiam convites falsos, presentes esquisitos e, claro, eram chamados de “tolos de abril”. Em outras palavras, o primeiro grande caso documentado de fake news histórica.
Mas não para por aí! Existem explicações ainda mais antigas. Na Roma Antiga, havia a Hilária, um festival no dia 25 de março onde as pessoas usavam disfarces e riam de tudo e de todos, uma espécie de Carnaval. Enquanto isso, na Índia, o Holi, com suas cores e bagunça, marcava o fim de março com um clima perfeito para brincadeiras. Coincidência? Talvez. Ou talvez a humanidade sempre tenha gostado de um bom motivo para enganar os outros sem culpa. Quem nunca contou uma história para evitar uma bronca? ”
Na Índia, o Holi marcava o fim de março com um clima perfeito para brincadeiras
Mas eis a grande questão: será que a história sempre nos conta a verdade? Santo Agostinho, lá no século IV, já pensava sobre o tempo e dizia que o passado só existe na memória, o futuro é só uma ideia e o presente… bem, ele mal dura o suficiente para a gente pegá-lo. Em outras palavras, o tempo é um conceito tão escorregadio quanto um sabonete no banho. Isso quer dizer que a história, sendo um amontoado de passados, pode muito bem ser uma grande ficção coletiva.
E falando em ficção, Santo Agostinho tinha uma teoria curiosa sobre a mentira. Em seu livro “Sobre a Mentira” (De Mendacio), ele separava o embuste – a mentira maldosa usada para enganar – da mentira generosa, aquela contada por um bom motivo. Para ele, mentir para oprimir ou trapacear era pecado, mas aquela mentirinha para salvar um amigo, para aliviar um sofrimento, ou até mesmo para contar uma boa história? Essa já não parecia tão condenável. Ou seja, se sua avó disser que o mingau de aveia que ela fez é delicioso e você, para não magoá-la, responder “Humm, que maravilha!”, Santo Agostinho provavelmente te absolveria.
Se aplicarmos isso à história, será que algumas versões um pouco distorcidas não poderiam ser vistas como “mentiras do bem”? Vamos a um exemplo clássico: Tiradentes. A imagem que temos dele, com longos cabelos e barba de profeta, foi criada muito tempo depois de sua morte para reforçar seu papel de mártir da Inconfidência Mineira. Essa “mentira generosa” ajudou a construir um símbolo nacional. Então, foi um embuste ou apenas uma bela narrativa para inspirar?
Agora voltemos ao Dia da Mentira. Ele pode ter nascido na França, em Roma ou na Índia, mas o que importa é que existe, e nós o usamos para pregar peças nos outros – tudo dentro dos limites do bom humor (ou quase). E no final, a história é uma grande colcha de retalhos onde se misturam verdades, exageros e invenções descaradas. E, às vezes, o que acreditamos ser um fato é apenas uma mentira que sobreviveu tempo suficiente para virar tradição.
Portanto, podemos concluir que a história é como um grande teatro onde os fatos reais e as fábulas dividem o mesmo palco. Alguns relatos são criados para justificar mudanças políticas, outros para nos fazer rir, e muitos simplesmente porque alguém achou que seria mais divertido assim. No final, a pergunta permanece: se acreditamos em certas versões, isso as torna verdadeiras? Santo Agostinho talvez nos dissesse que, se o tempo é uma ilusão, a história pode ser também. Mas, enquanto filosofamos sobre isso, seguimos contando histórias, misturando verdades e ficções – e, claro, nos divertindo com tudo isso.
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